Os lares

É uma das áreas em que as lacunas da acção social do Estado são mais evidentes, e a pandemia veio apenas agudizar as múltiplas carências existentes.

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Paulo Pimenta

Para lá de vídeos que aparecem e desaparecem, editados ou não, para lá de desabafos, contextualizados ou não, para lá das guerras semiabertas ou da paz semicelebrada, que, na verdade, não hão-de passar de mais uns (entre vários) devaneios estivais, a grande questão continua a ser o facto de nunca se ter investido numa verdadeira estratégia para os lares, para além da mudança de designação para Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI), e das habituais promessas de medidas a implementar, normalmente em situações de maior pressão mediática, mas sem que nunca seja explicado como serão essas medidas implementadas — até porque raramente o são ou podem, sequer, sê-lo.

É que esta é uma das áreas em que as lacunas da acção social do Estado são mais evidentes, e a pandemia veio apenas agudizar as múltiplas carências existentes e, sobretudo, veio levantar a ponta (uma pequena ponta) do véu dos problemas destas instituições.

Com uma população crescentemente envelhecida, isto é, com mais velhos e com idades cada vez mais avançadas, será de recordar que esta é, também, uma população cujos recursos são escassos, como escassos são os recursos e as condições (económicas, habitacionais e de tempo) das famílias, para a apoiar.

E a oferta de estruturas de apoio (financeiramente acessíveis ao nível de rendimentos das pessoas) é claramente insuficiente — para além das estatísticas, que o atestem as tantas famílias que, pressionadas por uma qualquer emergência, percorrem absolutos calvários na procura de um lugar digno e economicamente acessível onde colocar os seus parentes mais velhos.

Escreve-se e teoriza-se que a institucionalização deve ser evitada e que o envelhecimento deve ocorrer nos espaços conhecidos, acolhedores e de conforto da família e da comunidade, algo que assim, na teoria e nos modelos ideais apresentados no conforto dos congressos, até faz sentido. Ou melhor, faz todo o sentido. Não podemos é esquecer-nos da tremenda dissonância entre estes humanitários ideais e a realidade das famílias e do próprio (des)ordenamento territorial do país.

E nessa realidade, infelizmente bem menos confortável e humanitária do que as salas de congressos, as famílias não têm condições para receber os seus mais velhos em casa, ou para os manter no seu próprio domicílio, prestando-lhes os cuidados e a atenção que a passagem dos anos costuma exigir. E nessa realidade sucede, também, que as cidades e os seus subúrbios são espaços de solidão, onde a vida corre sempre para lá das janelas, e as aldeias e vilas são feitas de ruas desertas (de gente, de posto de correios ou de centros de saúde), onde os velhos cuidam uns dos outros, numa solidariedade resignada e na medida das suas forças e das suas possibilidades.

Então, e porque a realidade é dissonante das encantadoras teorizações (vertidas, aliás, nos vários documentos produzidos pela Segurança Social), o que temos é a absoluta necessidade de recurso aos lares. Talvez não devesse ser assim. Mas é-o.

No país inteiro, de norte a sul, rural, urbano e suburbano, esbarramos com instituições que se converteram em verdadeiros “depósitos de velhos”, sentados em redor de salas e entontecidos pelo barulho dos televisores, onde não se vislumbram a “promoção da cidadania”; as “estratégias de reforço da auto-estima”; ou a “valorização da autonomia social”, apenas para citar alguma da retórica balofa dos guias e manuais de procedimentos e processos.

Depósitos onde escasseiam os recursos humanos especializados — nuns casos porque as verbas não o permitem, noutros por pura ganância — e onde os funcionários (insuficientes e mal pagos) se vão desdobrando nos esforços a que os move a sua própria humanidade e empatia. Porque cuidar não se limita aos gestos mais ou menos mecânicos (e ainda assim muito duros e de necessária formação) de mudar fraldas, dar banhos, empurrar cadeiras de rodas, ou ajudar a deitar.

Cuidar é, na situação actual da maioria das pessoas que ocupam os lares, ser o último laço com a vida, ser a única mão que se aperta, ser o único sorriso que se recebe. E cuidar é ser capaz de ajudar a combater a sensação de solidão, de desesperança e de inutilidade que invade estas pessoas. É ser capaz de ajudar a aligeirar a certeza do fim. A pandemia, afinal, só tornou tudo muito mais premente, severo, doloroso, porque, além da doença, aumentou a vulnerabilidade, o medo e o isolamento.

E isto, muito mais do que uma questão de saúde, é uma questão social.

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