Contextile 2020 interpela as memórias dos lugares de Guimarães

As obras patentes na bienal de arte têxtil de Guimarães, que começa este sábado, tentam exprimir lugares como a fábrica, a preservação de um saber comunitário ou o próprio corpo humano. Condicionado pela pandemia, o evento divide-se entre a realidade física e a virtual.

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A artista polaca Magda Sobon é presença habitual na bienal desde 2014 DR

Que lugares pode evocar uma obra de arte têxtil? Uma fábrica, onde as máquinas e os operários fiam e tecem para garantirem produção em massa? Um processo ancestral de criação que sobrevive à erosão do tempo? Ou tão só as sensações das roupas que aconchegam um corpo humano? Estas são algumas das hipóteses exploradas pela Contextile, a bienal de arte têxtil de Guimarães cuja quinta edição começa este sábado e termina a 25 de Outubro, sob o mote Lugares de Memória. “O tema é bastante amplo. Os lugares sobre os quais os artistas reflectem vão de um país ao corpo humano”, diz ao PÚBLICO a directora artística da bienal, Cláudia Melo.

A interpelação de lugares físicos ou simbólicos é bem palpável no Convento de Santo António dos Capuchos, que acolhe as obras das oito residências artísticas da bienal. As memórias do hospital que ali funcionou, entre 1842 e 1991, ainda habitam as divisões do edifício. Elas inspiraram, aliás, as pinturas em gaze médica e os desenhos de células humanas em decomposição da polaca Julia Grybós e da eslovaca Barbora Zentková, explica Cláudia Melo.

Mas os corredores de Santo António dos Capuchos também abrem caminhos para lugares de maior intimidade na relação entre o artista e a comunidade. É o caso de Patrícia Geraldes, que fez um trabalho em linho após a visita ao Grupo Folclórico da Corredoura, localidade vimaranense que preserva essa herança, mas também de Michèle Lorrain e de Mylene Boisvert, artistas convidadas ao abrigo da parceria com a Bienal Internacional de Linho de Portneuf (BILP), no Quebeque (Canadá). O trabalho de Mylene Boisvert é um mosaico de memórias de jardins, criado com os pontos do bordado de Guimarães que a artista aprendeu com as artesãs locais. Foi um processo complexo, explica Cláudia Melo, até pelo paradoxo de se criar uma obra de arte site-specific à distância, com “muitos emails e conversas Zoom” pelo meio – tanto os dois nomes da BILP, como Stephen Schofield, artista canadiano que, nesta bienal, explora as dualidades do corpo humano, não puderam voar para Guimarães devido à covid-19.

Confrontada com a pandemia, a cooperativa Ideias Emergentes, que organiza a Contextile desde 2012, manteve as datas previstas para o evento e disponibiliza o acesso virtual às exposições, sem cancelar o acesso físico. “A exposição internacional no Palácio Vila Flor só pode acolher 20 pessoas ao mesmo tempo, segundo as recomendações da DGS”, salienta a directora artística; a mostra tem 59 obras criadas por 50 artistas de 29 nacionalidades, com técnicas que vão dos teares Jacquard à impressão em alumínio, sendo inaugurada às 18h00 deste sábado.

O dia 1 da Contextile encerra no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, com a performance Fábrica: Amor e perda. Trata-se de uma obra do duo lituano Psilicone Theater, que explora a memória da indústria têxtil do concelho, nomeadamente a da Fábrica do Castanheiro, hoje inactiva. Com a ajuda da investigadora Paula Ramos Nogueira, Aukse Petruliene e Darius Petrulius criaram uma narrativa com cinco personagens de silicone. “É uma tentativa de transformar as histórias da Fábrica do Castanheiro em mitologia industrial e de perceber como este território foi retirado à natureza, segundo a promessa de uma vida melhor”, diz Aukse ao PÚBLICO.

A performance agendada para as 22h00, que tem ainda a colaboração de quatro músicos de Guimarães, é um dos denominados projectos satélite desta Contextile, que exploram o têxtil a partir de outras linguagens artísticas; os outros são a mostra de cinema ao ar livre (Rewind & Play) e a instalação multimédia Encontro Expansão.

A bienal como lugar

Foi noutra antiga fábrica têxtil da cidade, a Confil, que Magda Sobon, artista convidada pela bienal, decidiu expor. Numa das divisões do agora Centro para os Assuntos de Arte e Arquitectura, vislumbra-se um diálogo de duas peças, negras, com formas difíceis de catalogar. “Estas peças são feitas de t-shirts pretas, que rompi para fazer papel”, explica a artista polaca ao PÚBLICO. Nesta obra, procuro expressar alguma unidade com um universo que não se expressa apenas como um cosmos, mas também algo que nos rodeia, que nos toca”.

Habituada a transformar tecido em papel, Magda Sobon vai transmitir esse saber no serviço educativo de um evento em que já participara em 2014, em 2016 e em 2018. “Quando estive aqui pela primeira vez, fiquei muito surpreendida com o entusiasmo das pessoas. Senti uma grande atmosfera, e gosto de cá voltar, para mais num ano em que foi quase tudo cancelado”, confessa.

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