O Direito nos tempos de cólera

O tempo é de cólera, o que ajuda muito quem acha que vale tudo. Como se toda a gente não tivesse direitos e deveres e a Declaração Universal dos Direitos Humanos não vinculasse os Estados a obrigações de respeito, proteção e criação de condições para a realização desses direitos.

O tempo é de pandemia. De peste. De cólera. Porque é permanente o risco, a desconfiança, a limitação, o sofrimento. O que assusta, cansa, irrita e agudiza frustrações e revoltas. E ajuda a reforçar uma violência predadora apostada em abusar dos instrumentos da democracia para despojar as pessoas do sentido crítico, legitimando o regresso a supremacias e totalitarismos.

O tempo é de cólera, o que ajuda muito quem acha que vale tudo. Como se toda a gente não tivesse direitos e deveres e a Declaração Universal dos Direitos Humanos não vinculasse os Estados a obrigações de respeito, proteção e criação de condições para a realização desses direitos proclamados pelas Nações Unidas em 1948. Como se o Preâmbulo da Declaração não tivesse reconhecido que a dignidade inerente a todas as pessoas e os seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz; que o desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade; que é essencial a proteção dos direitos humanos através de um regime de direito, para que as pessoas não sejam compelidas, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão... E porque nunca é de mais a divulgação deste legado, recordo que segundo a Declaração toda a pessoa tem direito à vida, à liberdade, à dignidade, à igualdade, à não discriminação, à segurança pessoal, a não ser mantida em escravatura ou servidão, a não ser submetida a tortura nem a tratamentos cruéis ou degradantes, à igualdade perante a lei e à igual proteção contra qualquer incitamento à discriminação, ao recurso para as jurisdições nacionais contra atos que violem os direitos fundamentais, a não ser arbitrariamente presa, detida ou exilada, à não intromissão arbitrária na sua vida privada e familiar, a não sofrer ataques à sua honra, à liberdade de pensamento, religião, opinião, reunião e associação pacíficas, à participação na vida pública e ao voto secreto e periódico, à satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais, ao trabalho e à sua livre escolha, a condições satisfatórias de trabalho e à proteção no desemprego, a salário igual por trabalho igual, a um nível de vida adequado à satisfação da saúde e bem-estar, incluindo alimentação e alojamento, à educação, também para a plena expansão da personalidade e o reforço dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

E mais recordo que a mesma Declaração sublinha que toda a pessoa tem deveres para com a comunidade – como os que a pandemia nos exige e tantas vezes nos apetece recusar – e só está sujeita a limites ao exercício dos seus direitos para promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros, a ordem pública e o bem-estar numa sociedade democrática, não se podendo usar a Declaração para destruir os direitos e liberdades nela previstos.

Também em Portugal o tempo da cólera se vem revelando com crescente violência. Como se, nos termos da Constituição: a República não fosse baseada na dignidade da pessoa humana ou um Estado de direito democrático que se funda na legalidade democrática; as normas das convenções internacionais de que o Estado Português é Parte e as disposições dos tratados da União Europeia não fossem aplicáveis na nossa ordem interna; todos os cidadãos não gozassem dos direitos e não estivessem sujeitos aos deveres consignados na Constituição, não tivessem a mesma dignidade social e não fossem iguais perante a lei.

Como se: alguém pudesse ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual; os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais não devessem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou os respeitantes aos direitos, liberdades e garantias não fossem diretamente aplicáveis nem vinculassem as entidades públicas e privadas; ou fossem consentidas organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.

Como se não incumbisse ao Estado para proteção da família garantir o direito ao planeamento familiar e o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes, promovendo a conciliação da atividade profissional com a vida familiar. Como se o Estado não estivesse vinculado a promover a democratização da educação também para que contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades, o desenvolvimento da personalidade, da tolerância, da compreensão mútua, da solidariedade e da responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva.

Como se Presidente da República e Deputados não tivessem direitos e deveres enquanto titulares de cargos políticos, entre os quais o compromisso do Presidente eleito jurar por sua honra defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República; ou quanto aos Deputados, o direito a exercer livremente o seu mandato com garantia das condições adequadas ao eficaz exercício de funções, ou o direito de não responder civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício de funções, ainda que percam o mandato os que sejam judicialmente condenados por crime de responsabilidade no exercício da sua função em tal pena ou por participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.

Como se os limites materiais das leis de revisão constitucional não tivessem de respeitar a forma republicana de governo, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, o sufrágio universal, direto, secreto e periódico, o pluralismo de expressão e organização política, o direito de oposição democrática, a separação e a interdependência dos órgãos de soberania, a fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas ou a independência dos tribunais.

Como se o Código Penal não previsse crimes de ameaça e perseguição, de discriminação e de incitamento ao ódio e à violência, de instigação pública a um crime, de alteração violenta do Estado de direito, de incitamento à desobediência coletiva, de coação contra órgãos constitucionais ou de perturbação do seu funcionamento.

Como se o Estado português não fosse parte nos Pactos Internacionais sobre Direitos Civis, Políticos, Económicos, Sociais e Culturais e nas mais relevantes Convenções da ONU sobre Direitos Humanos, na Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou na Carta Social Europeia Revista. Ou não fosse membro da União Europeia que o vincula sobre a matéria nos Tratados incluindo a Carta dos Direitos Fundamentais.

Os tempos da cólera exigem escolhas decisivas. E se queremos que Portugal se mantenha um Estado de direito democrático, temos que reforçar o nosso conhecimento como pressuposto de uma participação eficaz no espaço público e do exercício consciente do direito de voto sempre que a democracia nos convoque.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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