O interior e os equívocos e limites da poética estratégica “verde” e “conservacionista”

A preparação do país para enfrentar novas crises sanitárias ou económicas pressupõe o seu reequilíbrio e não a cristalização do atual modelo territorial, como António Costa Silva acaba por propor.

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Serra do Açor, um palco da desertificação. O Interior precisa de economia para se repovoar teresa pacheco miranda

1. O Plano de Recuperação Económica (PRE2030) de António Costa e Silva (ACS) é um bom ponto de partida para delinear uma resposta à recessão causada pelo COVID-19. O documento, que atesta competência e qualidade intelectual do seu autor, contém uma síntese pertinente das linhas de força que marcarão o futuro próximo, uma visão consistente (mas discutível) para Portugal e algumas boas ideias e propostas. Mas revela, também, fragilidades que comprometem o seu alcance e eficácia: demasiado abrangente e repetitivo; assenta num diagnóstico superficial e distante do país real; minimiza as causas profundas de muitos dos problemas estruturais e dos fracassos para os resolver; propõe algumas visões e estratégias setoriais fundadas em equívocos e prioridades duvidosas, como é o caso da coesão territorial.

2. A promoção da coesão territorial merece uma atenção especial no PRE2030. A sua finalidade é reduzir as assimetrias territoriais. Mas quais? O PIB per capita e o poder de compra? As oportunidades de emprego e os salários médios? A acessibilidade a bens e serviços públicos? ACS não responde a esta questão, mas aponta um caminho para a promoção da coesão territorial: “programas orientados para a preservação da biodiversidade, a valorização do capital natural e a transformação da paisagem, apostando numa floresta ordenada e resiliente e numa atividade agrícola adaptada ao território, preparada para enfrentar os efeitos das alterações climáticas e para cadeias curtas de distribuição e de consumo”. E elege o interior do país, onde as assimetrias são mais vincadas, como o principal destinatário destes programas.

3. Qual o futuro e o papel expectável do interior no PRE2030? ACS considera que a agricultura, a floresta e o capital natural são “a chave para mobilizar o interior do país”. Uma agricultura e uma floresta ecológicas e sustentáveis, com uma dupla função de conservação e produção, mas em que a “prioridade deve ser a conservação”. Esta perspetiva suscita perplexidade e estranheza. Perplexidade porque o plano prevê a instalação no interior de projetos pouco «amigáveis» desta função «conservacionista», como são os megaprojetos de mineração (lítio) e os centros «de tratamento de resíduos e reciclagem.» Estranheza por ignorar a valorização económica dos seus recursos agrícolas, do vinho ao azeite, dos frutos secos aos hortícolas. Mas será que uma estratégia de desenvolvimento que circunscreve o seu foco ao setor agroflorestal e secundariza a sua função produtiva pode alcançar os objetivos a que se propõe? E o interior pode desenvolver-se sem economia produtiva, empresas competitivas e emprego qualificado?

4. O “Plano de investimento direcionado para o Interior”, uma das medidas do PRE2030, procura responder a esta questão, enunciando algumas linhas de ação interessantes e curiosas. A primeira é a exploração do conceito de Hinterland ibérico, “colocando as cidades, vilas e regiões fronteiriças a cooperar entre si, criando espaços geoeconómicos integrado e potenciando o acesso das empresas portuguesas ao mercado ibérico”. Mas ACS não só não diz como se faz como não nos explica porque é ao fim destes séculos todos o desenvolvimento e a integração da economia transfronteiriça, com a exceção de alguns casos pontuais e específicos, não aconteceu nem se aprofundou. Falta de vontade política, de visão estratégica e de medidas adequadas ou resultado das idiossincrasias de um território despovoado, com economias assistidas, mercados atomizados e trocas comerciais residuais?

5. Uma segunda linha de ação agrega um conjunto de propostas visando a “transição digital” e destina-se quer à inovação e à digitalização do setor agrícola e florestal, quer à criação de centros tecnológicos e ao alargamento da rede de fibra ótica a todo o país. ACS propõe ainda a criação de espaços geoeconómicos e clusters temáticos distribuídos pelas cidades do interior. Excelentes propostas que mereceriam, todavia, um outro enquadramento e ambição para produzirem os resultados esperados. A maioria das apostas privilegiam os recursos “naturais” e agroflorestais, embora surjam novas e inesperadas temáticas: digital, biomédicas e cidades do futuro. Mas as propostas são vagas, pouco fundamentadas, sem massa crítica e/ou escala e, sobretudo, com uma frágil amarração aos tecidos produtivos locais. E sem qualquer articulação com a reindustrialização do país, o que significa que esta não conta para o Interior, nem mesmo nos casos mais óbvios, como as renováveis ou as indústrias extrativas e a mineração.

6. A “clusterização” das áreas-chave das cidades médias e áreas envolventes é também uma das propostas de ACS para promover o desenvolvimento do interior. Mais uma boa ideia que, infelizmente, se fica por umas frases vistosas e sugestivas. O reforço da rede urbana deve ser um dos vetores chave do desenvolvimento do interior. O seu futuro, por mais estranho que pareça, joga-se nas suas cidades e vilas, já que o estancar da hemorragia demográfica depende, em grande medida, da capacidade dos seus centros urbanos em potenciar recursos e oportunidades, gerar iniciativas e atividades, atrair e fixar população. O que seria expectável, pois, é que ACS nos propusesse um programa consistente de reforço e desenvolvimento da rede urbana nacional, com uma incidência particular nas cidades médias e nos eixos urbanos do interior, como aliás previsto no PNPOT no qual ele se diz inspirado, capazes de assumirem um papel de verdadeiros polos e âncoras de desenvolvimento social e económico.

7. Portugal é um país marcado por profundas assimetrias territoriais. O problema é antigo, mas tem-se acentuado nas últimas décadas, com a concentração de pessoas, empregos e atividades numa estreita faixa litoral e, sobretudo, na bacia metropolitana de Lisboa. Em 2018, quase 82% da população do continente residia a menos de 50 km da costa e 45% nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Ora a pandemia do COVID-19 veio demonstrar não só os custos e os riscos desta concentração bipolar, mas também o caráter central do “território” na construção de um país mais seguro, resiliente e competitivo. O que significa que a preparação do país para enfrentar novas crises sanitárias ou económicas pressupõe o seu reequilíbrio e não a cristalização do atual modelo territorial, como ACS acaba por propor. Será que devemos concluir que o PRE2030 afinal se limita a consagrar, embora com um discurso novo e mais arejado, a velha ideia de que o interior se limita a ser a paisagem que enquadra Lisboa e o litoral?

Luís Leite Ramos, Alberto Aroso, António Costa e Silva, Carlos Lopes, José Soeiro, Ricardo Bento, Rui Alves (membros da Plataforma Portugal Interior 2030)

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