O jornalismo é uma obra de arte, como muitas, incompreendida

Cada vez mais é notória a relação entre jornalismo e arte. Mais: a reação do público ao jornalismo é, muitas vezes, semelhante à de um primeiro encontro com A Fonte de Marcel Duchamp.

Quando, em 1917, Marcel Duchamp inscreveu um urinol em loiça na exposição anual da Sociedade de Artistas Independentes de Nova Iorque, a reação não foi a melhor (aliás, a obra foi rejeitada pelo comité de seleção). Mas A Fonte acabaria por ter um papel essencial na libertação da arte do seu aprisionamento pictórico, isto é, como mero reflexo da realidade. Uma obra de arte vale muito mais pela mensagem que o artista quer transmitir e pela experiência estética que proporciona.

Sabemos há mais de um século que o jornalismo não é um espelho da realidade, mas sim uma construção desta. A visão que nos é dada do mundo varia em função da estratégia editorial de cada meio de comunicação social. 

Nessa construção da realidade, a expressão artística tem adquirido uma importância cada vez maior, em particular com as potencialidades que o digital trouxe ao storytelling ou às novas narrativas. Há uns anos, o ex-libris da criatividade no jornalismo seria talvez a capa de uma revista, uma reportagem fotográfica ou as peças próximas da literatura. Hoje, narram-se histórias no jornalismo em géneros e formatos híbridos – jornalísticos e artísticos –, recorrendo, por exemplo, a visualização de dados, mini documentários, animações, realidade virtual ou aumentada. Tal como a arte, o jornalismo também tem passado por várias experiências, muitas delas de âmbito artístico, para construir da melhor forma a sua visão do mundo.

Não sou só eu a pensar assim. Vários investigadores e profissionais da área reforçam esta ponte e não é por acaso que os media criativos são cada vez mais importantes não só no jornalismo, mas nas restantes indústrias criativas. Destaco dois nomes: Mark Deuze e John Hartley.

Mark Deuze, professor na Universidade de Amesterdão, Holanda, defendeu, há uns meses, num artigo publicado em co-autoria na revista Journalism Studies, a confluência de valores, formas e práticas do jornalismo e da arte. Intitulado “Artistic Journalism”, o artigo mostra precisamente que muitos dos formatos contemporâneos do jornalismo – desde o fotojornalismo ao documentário – são próximos de géneros artísticos, neste caso, da fotografia e do cinema, e que muitos dos novos profissionais dos media se identificam como jornalistas e designers (por exemplo, os infográficos). Além disso, parte da motivação dos jovens estudantes que querem enveredar pelo jornalismo provém dessa componente criativa. 

Por outro lado, há quase 20 anos que John Hartley, professor na Universidade de Curtin, Austrália, se dedica ao estudo da criatividade e das indústrias criativas, incluindo o papel da criatividade na inovação dos media. Já entre 2011 e 2013 tinha coordenado um projeto de investigação sobre o papel das artes e dos media na prática criativa intitulado “Digital storytelling and co-creative media” e os resultados foram muito claros – a de que há uma relação intrínseca entre um e outro. 

Uma peça jornalística poderá ser, de facto, uma obra de arte. Será também, à semelhança de algumas artes visuais contemporâneas, incompreendida? Sim, mas as respostas são tão extensas que ficam por aqui apenas algumas pistas.

Ao contrário do que parte do público pensa, a arte e o jornalismo não são dispensáveis. A pandemia mostrou-nos isso de forma clara. Mas é preciso promover a compreensão destas duas áreas através da literacia artística e da literacia mediática. É também preciso promover o ensino da criatividade no jornalismo e a sua prática nas redações.

Ambas não podem ser apenas vistas à superfície. A arte é muito mais do que o objeto artístico. O jornalismo é muito mais do que notícias em primeira mão. Ambas têm de ser usufruídas enquanto expressões do mundo, registo de memórias do quotidiano e património cultural material e imaterial.

Talvez a grande diferença do jornalismo em relação à arte seja a de que, embora os dois partam da realidade, o jornalismo tenha um compromisso para com os factos, a verdade e a proximidade possível da objetividade. São valores que não podem mudar, independentemente dos formatos mais ou menos artísticos que se usem para contar as histórias.

Há quem argumente que o foco no storytelling ou em estratégias narrativas para envolver mais os leitores ameaçam estes valores básicos do jornalismo. Mas isso é tapar o sol com a peneira, porque as redações que comprometem a qualidade do jornalismo e a sua autoridade num mundo com excesso de informação, mas pouco conhecimento, não precisam de grandes experimentações artísticas para o fazer. O esquecimento desses valores é precisamente a sua estratégia narrativa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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