Nem tudo é arte, nem todos são artistas

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O forte convicção de Louro é que o silêncio de Marcel Duchamp está demasiado valorizado e é preciso combatê-lo Miguel Manso

Para João Louro The Cold Man é um gesto de resistência: uma reacção ao excesso de objectos irrelevantes que diariamente são colocados no mundo por indivíduos que reclamam ser artistas

Esta é uma exposição de livros. Não no sentido de ser uma exposição sobre literatura, escritores ou textos famosos, mas são as capas de livros, como Leaves of Grass de Walt Whitman, Saison en Enfer de Rimbaud, Walden or Life in the Woods de Thoreau, entre outros, que servem de mote para o que João Louro inaugura terça-feira em Lisboa. O título, The Cold Man, não é uma pista para desvendar os segredos guardados pelas novas obras do artista que, contrariando as expectativas, são, desta vez, pinturas. As suas Blind Images, enormes caixas monocromáticas com a inscrição da legenda de uma imagem escondida por uma camada de cor, e as suas esculturas ao tom minimal-conceptual norte-americano em que tudo é uma questão de forma, dão agora lugar a pinturas e desenhos. “Os livros servem como expressão de certos universos que gosto de ter por perto. Como costumo dizer, dão-me conforto.” Não são pinturas que ilustrem ou interpretem as obras literárias evocadas, mas convocam-nas como elementos expositivos.

O “homem frio” que dá o mote a todas as obras é o ponto em torno do qual as peças se reúnem. Trata-se de um escritor-assassino em série cuja identidade é construída à semelhança de uma novela ou romance. Todas as obras são vestígios não só da personalidade do escritor, mas das suas acções e, sobretudo, da sua visão do mundo. O que é relevante neste thriller pictórico são, diz Louro, “dois aspectos: primeiro, que se trata de uma personagem fictícia e, portanto, sem fixação de cronologia ou período histórico; segundo, que está em causa uma espécie de processo literário, ou seja, a personagem não está definida à partida, mas vai ganhando mais contornos quanto mais se avança na investigação.” Que é feita a duas mãos: primeiro pelo artista que apresenta pistas e sugestões e, depois, pelo espectador a quem cabe dar uma forma final ao puzzle.

Esta descrição não só afasta estes trabalhos de qualquer proximidade com a tão contemporânea ideia de arquivo, mas sobretudo acentua a sua qualidade de constructos fictícios e realça a actividade da imaginação produtiva. Isto, no contexto da obra de Louro, é uma novidade. Habitualmente o seu universo carateriza-se por acções de citação e apropriação. Em trabalhos anteriores o artista não criava propriamente imagens ou figuras, mas agia sobre um enorme banco de imagens que recolhia da imprensa e da história da arte. Uma acção às vezes de apagamento da imagem, outras da sua intensificação ou da redescoberta da sua potência plástica. Ainda que para Louro as gramáticas dos gestos de criar, citar e apropriar não sejam tão claras como tanto se quer fazer parecer. “Tenho alguns problemas com essas ideias, porque o novo não é uma coisa absoluta ou impensável, mas é a composição de elementos já existentes e agora organizados de outra forma. E, a meu ver, é isto que produz a novidade. Portanto, o que aqui está em causa é uma reorganização de elementos já existentes. Isto para dizer que nestas novas pinturas continuo a falar do mesmo e não estou a fazer recurso a elementos anteriormente impensáveis ou inimagináveis. Ainda que seja verdade haver nesta exposição uma situação diferente do habitual no meu trabalho.”

Portanto, não se trata de desprezo relativamente ao modo como o conceito e o processo racional é indispensável a qualquer obra de arte. “Eu sou um artista conceptual, em primeiro lugar está sempre a ideia. Não começo nenhum trabalho sem saber o que vou fazer. E mesmo neste caso em que os elementos imprevisíveis da pintura são tão evidentes, é sempre a ideia que me move. Nesta exposição existe um conceptualismo mais aberto, porque cada obra possibilita a entrada das possibilidades dos diferentes materiais, as suas reacções quando combinados e, por isso, é um processo nada mecânico e pré-definido, mas há uma evolução que permite a integração de imprevistos.”

A um primeiro olhar até pode parecer que só mudou a técnica: reproduções de capas livros, atentas à tipografia, ao arranjo gráfico, ao logótipo da editora, etc. Mas depois descobrem-se os fundos e o modo como a tipografia é só aparente e afinal está em causa uma caligrafia especial. E é através destes aspectos, só aparentemente formais, que se impõe o tema da exposição. Não se pode dizer tratar-se de um regresso à pintura como se falou nos anos de 1980, mesmo que os temas mais clássicos da pintura convencional, como o retrato e a paisagem, estejam presentes; para Louro esta exposição marca uma ruptura com as concepções vigentes que as artes plásticas herdaram do modernismo e de acordo com as quais qualquer coisa pode ser uma obra de arte e qualquer um pode ser um artista. Para Louro é importante saldar a herança duchampiana. “É preciso reenviar Duchamp para o seu tempo histórico e repensar a arte contemporânea a partir de outros pressupostos que não os do modernismo.”

O silêncio de Duchamp

Não se trata de discutir em profundidade a herança de Marcel Duchamp, mas criticar a sua versão mais apressada e prisioneira dos Ready-Made – uma estratégia na qual qualquer objecto industrial, anónimo e banal pode ser uma obra de arte desde que deslocado para um contexto artístico e depois de nomeado e reconhecido como arte. E é um correctivo que Louro quer introduzir no debate em torno das práticas artísticas que se reclamam herdeiras do modernismo. A sua forma de corrigir esses excessos é através da estratégia de “recuperar alguns elementos pré-duchampianos.” E é aí que surge a pintura, como “esforço de recuperação dessa arte pré-moderna. Interessa-me fazer um regresso porque esta herança é penosa e porque este ‘tudo vale’ aparentemente possibilitado pelo modernismo contém a maior falsidade histórica. O meu ponto é que nem tudo é arte, nem todos são artistas.”

É preciso acrescentar que não se trata de negar o ingrediente criativo que qualquer pessoa deve reclamar para as suas actividades quotidianas, nem a pertinência das sociedades criativas e, logo, mais democráticas dando eco ao sentido mais profundo da lição de Joseph Beuys. E, por isso, diz, “não se trata de tirar qualidade e genialidade à obra de Duchamp, mas chamar a atenção para os equívocos gerados e insistir na necessidade de uma contextualização histórica da sua obra. No contexto de combate ao gosto burguês em que ele se inseriu, as suas reivindicações não poderiam ser mais relevantes, mas fora do seu tempo a sua revolução só gera ruído que é preciso contrariar.” Não se trata de desprezo pelas vanguardas artísticas, mas de um esforço de realçar a necessidade de “explicar as origens históricas e culturais do modernismo que tanto nos pesa.”

Esta crítica mais profunda é aos artistas que fazem depender o seu trabalho das chamadas boas ideias, mas que depois não reflectem qualquer cultura visual. Portanto, uma reacção ao excesso de objectos indiferentes e irrelevantes que diariamente são colocados no mundo por indivíduos que reclamam ser artistas. Não se trata de negar a importância do elemento racional, abstracto e até teórico que toda a arte apresenta e que é a sua condição, nem fazer recair a qualidade artística no virtuosismo do saber-fazer, mas reivindicar obras com mais que boas ideias.

O discurso de Louro é percorrido por uma exigência de profundidade para as imagens. E a esta luz todo o seu trabalho surge como possuindo uma vocação pela profundidade. Aliás, muitas das obras lidam com o modo como as imagens sobrevivem e geram sentido na nossa cultura. Aspectos estes que surgem claramente nas Blind Images em que Louro tapa a fotografia e só revela a legenda. Uma acção não destinada a reenviar a imagem para a invisibilidade, mas mostrar a complexidade da sua leitura, visão, compreensão.

Para Louro, que estudou pintura e que tinha na natureza o seu grande tema, este regresso à pintura é uma forma de resistência. Que não implica a valorização do artista como entidade em contacto com a transcendência, guiado por uma força maníaca e cuja intuição metafísica o liga ao universo. O seu trabalho é uma síntese entre o minimal e o conceptual e tem Arthur Cravan o seu herói. E, tal como Joseph Beuys, a sua forte convicção é que o silêncio de Duchamp está demasiado valorizado e é preciso combatê-lo.

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