Biden escolhe Kamala Harris, a primeira mulher negra candidata a “vice” dos EUA

Harris, de 55 anos, era a favorita da lista de mulheres que o candidato do Partido Democrata entrevistou nas últimas semanas. Os protestos anti-racismo tornaram a sua escolha quase inevitável.

Kamala Harris: a escolha certa para o Partido Democrata? Reuters, PÚBLICO

Já se sabia que o candidato à Casa Branca pelo Partido Democrata, Joe Biden, ia escolher uma mulher para o acompanhar como candidata à vice-presidência nas eleições de Novembro, mas os recentes protestos anti-racismo nos Estados Unidos levaram-no a apertar ainda mais os seus critérios de selecção. A decisão, anunciada esta terça-feira, veio desfazer as poucas dúvidas que ainda existiam: a primeira mulher negra nomeada por um dos dois maiores partidos norte-americanos como candidata a “vice” é Kamala Harris, uma senadora da Califórnia que concorreu às primárias do Partido Democrata e que chegou a acusar Joe Biden de colaborar com políticos racistas e segregacionistas.

Aos 55 anos, Harris tem no currículo uma carreira de quase 30 anos como advogada e procuradora na Califórnia, que culminou com a sua eleição para dois mandatos como procuradora-geral do estado, entre 2011 e 2017.

Nas eleições de Novembro de 2016 – as mesmas que ditaram a vitória de Donald Trump contra Hillary Clinton –, Kamala Harris foi eleita senadora da Califórnia, e foi nesse cargo que saltou para a política nacional. Para além das suas promessas de luta contra as políticas anti-imigração de Trump, Harris destacou-se pelos seus questionários a nomes ligados ao Partido Republicano, em comissões de inquérito e audiências para nomeações.

As suas perguntas, que faziam lembrar os questionários dos advogados de acusação nos tribunais, valeram-lhe reprimendas de senadores como John McCain, do Partido Republicano, que lhe pediu, em 2017, para ser mais comedida numa audição ao então procurador-geral-adjunto, Rod Rosenstein.

Comentários como os de McCain e de outros políticos (Jeff Sessions, então procurador-geral norte-americano, disse numa audição, em 2017, que as perguntas de Harris o deixavam nervoso), e artigos nos media retratando-a como ambiciosa de mais para a vice-presidência, levaram os seus defensores a falarem em machismo. Por essa altura, foi posta em circulação uma petição para que os senadores McCain e Richard Burr, ambos republicanos, não voltassem a interromper Kamala Harris no Senado.

Em 2018, Harris protagonizou, com o senador Cory Booker, também do Partido Democrata, alguns dos momentos mais tensos nas audições ao juiz Brett Kavanaugh, nomeado pelo Presidente Trump para o Supremo Tribunal e acusado de abusos sexuais por antigas colegas de universidade.

Em Junho do ano passado, já como candidata à nomeação pelo Partido Democrata, Harris acusou Joe Biden de ter colaborado com senadores racistas do Partido Republicano na década de 1970.

Numa troca de palavras que muitos viram como um obstáculo à sua escolha para candidata a “vice” assim que Biden garantiu a nomeação, Harris confrontou o seu agora líder de campanha com a oposição do então jovem senador às políticas que tinham como objectivo forçar o fim do segregacionismo nas escolas públicas norte-americanas.

"Escolha segura"

Ouvido pelo PÚBLICO, Ross Burkhart, professor de Ciência Política na Universidade de Boise, no estado do Idaho, considera que Kamala Harris é “uma escolha segura” e alguém que preenche uma das exigências de Joe Biden: entender-se com ele da mesma forma que Biden se entendeu com Barack Obama quando foi seu vice-presidente, entre 2008 e 2017.

“É uma comunicadora eficaz, é boa a debater, tem reconhecimento nacional e é vista como uma potencial Presidente”, disse Burkhart, que salienta, acima de tudo, a escolha de uma mulher negra.

“É muito importante por motivos históricos e políticos – as mulheres negras são um eleitorado leal ao Partido Democrata.”

Kamala ​Harris saltou para o topo das favoritas no início do Verão, na sequência dos protestos anti-racismo que se seguiram ao homicídio de George Floyd, morto por um polícia branco em finais de Maio.

Isso e o facto de Joe Biden ter dado a volta a uma derrota quase certa contra o senador Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata, em finais de Fevereiro, com uma vitória avassaladora no estado da Carolina do Sul graças ao eleitorado negro, tornaram quase inevitável a escolha de uma mulher negra como candidata à vice-presidência.

Numa primeira reacção, na rede social Twitter, Kamala Harris referiu-se a Joe Biden como um futuro Presidente que vai pôr os Estados Unidos “à altura dos seus ideais” e disse sentir-se “honrada” com a escolha.

Momento certo

Outra favorita na corrida era Susan Rice, conselheira nacional de Segurança no segundo mandato de Barack Obama e embaixadora dos Estados Unidos na ONU entre 2009 e 2013.

Também negra, Rice tinha a seu favor uma relação de trabalho de vários anos com Joe Biden, seu interlocutor directo em muitas questões de política externa na Administração Obama.

Mas a ausência de activismo político e social no seu currículo e o facto de ser odiada nos sectores mais conservadores do Partido Republicano pela forma como geriu os momentos iniciais do ataque às instalações diplomáticas norte-americanas em Benghazi, no Líbano, em 2012, tornavam a sua escolha problemática no ambiente actual.

Num primeiro ataque à escolha de Joe Biden, o Presidente Donald Trump partilhou no Twitter um vídeo em que Kamala Harris é descrita como uma “radical de esquerda” – apesar de o passado político e as propostas de Harris serem mais ao centro do que nomes como Bernie Sanders ou Elizabeth Warren, ambos candidatos derrotados nas primárias do Partido Democrata.​

Até há pouco tempo, Kamala Harris não era sequer um dos nomes mais estimados pelo eleitorado progressista, que a acusa de ter sido uma procuradora demasiadamente dura com a pequena criminalidade, em particular com a posse de marijuana.

De acordo números divulgados em Setembro de 2019 pelo jornal Mercury News, de San Jose, na Califórnia, Harris acusou e obteve a condenação de mais pessoas por posse de marijuana do que o seu antecessor, mas a esmagadora maioria foi submetida a programas de sensibilização e outros tratamentos, e apenas 45 foram efectivamente presos.

A caminho da Sala Oval?​

Ao escolher Kamala Harris, Joe Biden sinaliza ao país que a senadora da Califórnia é a mais bem posicionada no Partido Democrata para ser Presidente dos Estados Unidos nos próximos anos.

Prestes a fazer 78 anos de idade, Biden será o Presidente norte-americano mais velho se for eleito em Novembro, destronando Donald Trump, que foi eleito aos 70 anos. Em várias ocasiões, o candidato do Partido Democrata disse que se vê a si próprio como uma ponte para o futuro do partido e do país, e é provável que não se recandidate a um segundo mandato se vencer este ano.

Se não for chamada mais cedo para ocupar a Sala Oval, Kamala Harris estará numa boa posição para concorrer à presidência em 2024 e tornar-se a primeira mulher e a primeira mulher negra a liderar os Estados Unidos.

Depois de Ferraro e Palin

Para além de ser a primeira mulher negra candidata à vice-presidência por um dos dois maiores partidos norte-americanos, Kamala Harris é apenas a terceira mulher nomeada para essa função. 

A primeira foi Geraldine Ferraro, uma advogada e congressista que foi escolhida pelo candidato do Partido Democrata nas eleições de 1984, Walter Mondale, numa derradeira tentativa para salvar a sua corrida contra o então Presidente, Ronald Reagan.

Depois disso, seria preciso esperar 24 anos para que outra mulher fosse escolhida por um dos dois maiores partidos para concorrer à vice-presidência. Em 2008, o republicano John McCain acabou por ceder às pressões para escolher a conservadora Sarah Palin, depois de não ter conseguido convencer o partido a nomear o seu amigo Joe Lieberman, um senador do Connecticut que tinha concorrido a vice-presidente pelo Partido Democrata em 2000.

Nascida em Oakland, na Califórnia, em 1964, Harris é filha de Donald Harris, um professor de Economia na Universidade de Stanford que emigrou da Jamaica para os Estados Unidos em 1961, e de Shyamala Gopalan, uma investigadora dedicada ao cancro da mama que emigrou da Índia em 1960.​

Sugerir correcção