Investigadores dizem que DGS lhes deu dados “incompletos” e com “erros”. Não há tempo para preencher tudo, alega DGS

Nos dados fornecidos pela Direcção-Geral da Saúde aos investigadores há “homens grávidos”. Especialista admite que há omissões nos dados, mas sublinha que o objectivo central do sistema de vigilância epidemiológica é permitir “travar rapidamente cadeias de transmissão”.

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Manuel Roberto

A Direcção-Geral da Saúde (DGS) forneceu a investigadores dados de vigilância epidemiológica de doentes com covid-19 “incompletos” e com “erros” que deram origem já a pelo menos dois artigos publicados em revistas científicas que se basearam em informação “incorrecta”, adiantam investigadores que tiveram acesso a este material. E se alguns destes “erros” são compreensíveis apesar de “caricatos”, como o de incluírem “homens grávidos” na lista de doentes, há outros que são “mais graves”, defende Cristina Santos, professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e especialista em bioestatística que desde o início achou que os dados disponibilizados pela DGS eram “um pouco estranhos”.

A história foi contada pelo Observador que, além de Cristina Santos, ouviu outros investigadores que tiveram o acesso a dois ficheiros com os dados, até 30 de Junho, dos doentes com covid-19 (como idade, sexo, que cuidados recebeu, etc). O primeiro foi disponibilizado pela DGS em Abril, “após muita insistência da comunidade científica”, e o segundo no início desta semana, recorda a investigadora.

Foi agora, quando recebeu este segundo ficheiro, que Cristina Santos concluiu que as suas suspeitas de que os dados estavam “tão incompletos que não permitiam avançar com qualquer tipo de investigação” tinham razão de ser, segundo explicou ao PÚBLICO. Percebeu que em cerca de metade dos casos reportados não é possível saber se o doente tinha ou não uma doença prévia (40% dos quais porque a informação ficou por preencher nas notificações). E muitos doentes eram pessoas com mais de 65 anos. “É normal que acima desta idade as pessoas tenham doenças crónicas”, nota. O problema é que a palavra que aparecia era “none”, o que terá induzido os investigadores em erro, levando-os a concluir que os doentes não tinham doenças prévias. Quanto aos casos de pacientes, homens, que surgiram como estando grávidos, frisa, bastava o sistema ser validado pela DGS e ter alertas para tal não acontecer. 

“Dados errados só podem conduzir a conclusões erradas”, enfatiza. O problema “é que estão a ser publicados artigos científicos que se baseiam nestes dados, que se percebe agora que são pouco credíveis, apesar de serem fornecidos pela autoridade de saúde”, critica, adiantando que tenciona escrever aos editores das revistas científicas em que os artigos foram publicados a alertá-los para este problema.

Confrontada com as críticas, uma especialista da DGS reconheceu ao PÚBLICO que há omissões nas bases de dados fornecidas mas sublinhou que isso decorre do facto de as notificações serem efectuadas pelos médicos que estão no terreno, que “têm tantos doentes e tanto trabalho que muitas vezes não conseguem preencher tudo”. Além disso, frisa, o objectivo central deste sistema de vigilância epidemiológica é permitir “travar rapidamente cadeias de transmissão para conter a epidemia”. “Essa é que é a prioridade e estamos numa situação completamente anormal, portanto, o trabalho de validação dos dados é menos preciso e menos urgente”. De resto, “qualquer bom investigador sabe que as bases de dados têm dados omissos” e que os sistemas de informação nunca são perfeitos.

Mas este não será o único problema detectado pelos cientistas. Um outro investigador ouvido pelo Observador, Luís Antunes, da Universidade do Porto, centrou as críticas na questão da anonimização dos dados, alegando que não protege a identidade de uma parte substancial dos doentes, que há “erros”. Explicou que foi suficiente ver o primeiro ficheiro para perceber que a DGS tinha cometido erros básicos na anonimização dos dados. A nova base de dados, em vez de corrigir o problema, só o agravou: potencialmente mais de 90% dos mortos podem ser identificados cruzando a base de dados com elementos externos, afirma. A especialista da DGS desvaloriza as críticas. “Os investigadores estão obrigados a sigilo e a proteger o anonimato [dos doentes]. E esse problema não se coloca em 90% dos casos. Fizemos o máximo de anonimização possível”.

De resto, as críticas não são unânimes. Paulo Nogueira, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, co-autor de um dos artigos científicos publicados que se basearam nestes dados, também desdramatizou a situação. “Vamos fazendo o melhor que se consegue”, disse ao jornal o investigador do Instituto de Saúde de Medicina Baseada na Evidência.

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