Património Cultural e a organização do Estado

Deve ou não o Estado incorporar na sua estrutura organismos de âmbito nacional, especializados e com autonomia técnica, com poderes vinculativos e competências de superintendência, normalização, regulação, gestão da informação, que constituam um nível diferenciado, hierarquicamente superior, de apoio à decisão política? A resposta não é pacífica nem consensual.

A descentralização de competências do Estado para organismos de âmbito local e regional é comummente considerada um bem. O papel do poder local na melhoria das condições e qualidade de vida dos cidadãos é inegável e uma das conquistas da nossa Democracia e é sabido que parte considerável dos políticos deseja a regionalização. A gestão pública do Património Cultural tem vindo a ser desenvolvida na esfera governativa da Cultura, por organismos especializados exclusivamente dedicados a esta tarefa que integram serviços desconcentrados. Observam-se contudo duas tendências, a transferência de competências para organismos de âmbito regional e local e a fusão e descaracterização funcional de organismos especializados, vistos apenas como barreira onerosa à eficiência do Estado e ao desenvolvimento. Nesta colisão de perspectivas, verifica-se ainda o conflito entre a legitimidade democrática — que confere aos órgãos políticos eleitos o poder de decisão sobre a organização dos serviços públicos — e a legitimidade do conhecimento — que confere a quem o detém, o poder de avaliação das opções técnica e cientificamente mais correctas. E em pano de fundo, os “temas” do nosso tempo: controle financeiro, racionalização de recursos e orgânicas, reorganização e redistribuição de “poderes”, compensações e equilíbrios políticos.

Neste contexto, o Governo tem vindo a executar (desde 2017) o “pacote da descentralização”: a transferência de competências da administração pública central para as autarquias locais já implementada (Lei n.º 50/2018 e, no sector da Cultura, o Decreto-Lei n.º 22/2019) e a integração de serviços da administração desconcentrada do Estado nas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), cujo 1.º passo, eleição dos presidentes das CCDR por autarcas, foi publicado em 17 de Junho passado (Decreto-Lei n.º 27/2020). Suceder-se-á a integração dos serviços desconcentrados da educação, saúde, cultura, entre outras nas CCDR.

No que se refere ao Património Cultural, esta reforma encerra um conjunto vasto de problemáticas, podendo consubstanciar uma rotura de consequências não devidamente avaliadas na trajectória seguida neste sector desde a implantação da Democracia. Levanta-se uma questão primordial: deve ou não o Estado incorporar na sua estrutura organismos de âmbito nacional, especializados e com autonomia técnica, com poderes vinculativos e competências de superintendência, normalização, regulação, gestão da informação, que constituam um nível diferenciado, hierarquicamente superior, de apoio à decisão política? A resposta não é pacífica nem consensual. Mas no mundo global, num país periférico e numa sociedade liberal em que o poder económico impera, apenas a existência de uma tutela patrimonial, tecnicamente competente e independente, forte e credível, pode fazer frente aos constantes ataques e atropelos ao Património Cultural que a todos pertence, define, identifica e diferencia; que nos congrega, enriquece e realiza.

A transferência de competências do Estado para as autarquias locais incidiu essencialmente sobre a gestão de monumentos e museus. Embora com muitos problemas, nomeadamente ao nível da transferência de recursos humanos e financeiros, não resolvendo nenhum dos problemas existentes, também não se revelou particularmente problemática. Já a integração de serviços e competências sobre a gestão do Património Cultural nas CCDR suscita muitas questões, uma vez que pode colocar em risco uma parte significativa da gestão pública do Património Cultural. Dificulta a definição e promoção de políticas nacionais. Baralha a superintendência política, pois as CCDR não dependem do Ministério da Cultura! Mas o aspecto mais crítico reside no exercício das competências de salvaguarda, licenciamento e fiscalização das intervenções sobre o Património Classificado e arqueológico, pois estas envolvem muitos interesses em conflito, a nível económico, político e social. É muito discutível e duvidoso que estas possam ser convenientemente exercidas por hierarquias e processos de decisão sem especialização técnica e científica. Por outro lado, as CCDR promovem projectos que, simultaneamente, irão licenciar e fiscalizar, o que não é transparente nem favorece a isenção! Os instrumentos especializados de gestão do Património Cultural de âmbito nacional como sistemas de informação, arquivos e bibliotecas especializados, laboratórios e centros de investigação e linhas editoriais ficam em risco.

A gestão do Património Cultural não é compaginável com aproximação de centros de decisão com interesses antagónicos. Sem sofismas: a cultura organizacional das CCDR vê o Património Cultural como um “obstáculo ao desenvolvimento”. Por isso, há que perguntar o que significa o Património Cultural para Portugal: um empecilho ou um dos maiores e mais relevantes recursos nacionais? A manutenção da gestão do Património Cultural na competência de organismos públicos especializados e independentes é a única resposta civilizacional, cultural, social e economicamente aceitável.

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