Português língua oficial da ONU e declarações do presidente do Camões, I.P.

O Oxford (britânico) e o Webster’s (americano) ditam ortografias diferentes e apenas uma delas é adoptada na ONU. A necessidade do AO90 para a língua portuguesa ser língua oficial da ONU é, como dizem os brasileiros, conversa para boi dormir.

“As Nações Unidas vinham resistindo porque a língua portuguesa não tinha uma ortografia comum”.
Juca Ferreira, ministro da Cultura do Brasil (17/11/2008)

1. Tenho aqui à minha frente uma preciosa instrução da Organização das Nações Unidas (ONU), relativa à convenção ortográfica a adoptar na redacção e edição de documentos e publicações em inglês. Trata-se de um texto de 1996, extremamente conciso e simples, com dois parágrafos. O primeiro diz-nos que a nona edição do The Concise Oxford Dictionary, de 1995, é a referência (“authority”) para a grafia e hifenização desses documentos e publicações (hoje em dia, a instrução mantém-se, assinalando a 12.ª edição do dicionário). Por seu turno, o segundo parágrafo indica que quaisquer dúvidas quanto à interpretação da instrução serão esclarecidas pelo chefe do serviço de edições da ONU. Ponto final. Esclarecida a instrução, vamos apanhar o autocarro.

Ao sairmos da sede da ONU, apanhemos o M15 em direcção ao Sul de Manhattan, apeemo-nos perto do Washington Square Park e entremos na Universidade de Nova Iorque (NYU), com um artigo em inglês debaixo do braço para avaliação. Cautela, esse artigo não pode estar grafado segundo o The Concise Oxford Dictionary, adoptado na ONU, de onde ainda há pouco saímos, pois as grafias adoptadas na NYU são as indicadas no Merriam-Webster’s Online.

Efectivamente, uma língua vivíssima da silva, numa cidade que nunca dorme, mas com instruções ortográficas diferentes: por um lado, as britânicas analyse, colour, traveller, leukaemia, defence, etc., por outro, as americanas analyze, color, traveler, leukemia, defense, etc. Com efeito, o inglês, sem espartilhos como o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), continua a ser um exemplo de vivacidade e de maravilhosa diversidade ao mais alto nível político e académico. No entanto, para muitos defensores do AO90, esta é a sinopse ideal de um filme de terror. Como diria o actual secretário-geral da ONU, “é a vida!”. Continuação de muita saúde para a língua inglesa: eis o meu desejo.

Como é sabido, alguns políticos e alguns linguistas dedicados a missões de serviço muito políticas e pouco científicas costumam recorrer a argumentos extremamente divertidos para venderem o AO90 aos incautos. Um desses argumentos, aparentemente caído em desuso (mas, cuidado, pode sempre haver recaídas), é a necessidade da existência de uma norma ortográfica comum para que a língua portuguesa possa vir a ser um dia língua oficial da ONU. Isto é, sem AO90, segundo alguns vendedores do produto, as possibilidades de o português ser língua oficial da ONU são praticamente nulas. Felizmente, como vimos há pouco com o precedente da língua inglesa, o Oxford (britânico) e o Webster’s (americano) ditam ortografias diferentes e apenas uma delas é adoptada na ONU e, saliente-se, não é a do país que alberga a instituição. Esta realidade desmascara a farsa da necessidade do AO90 para o português se tornar língua oficial da ONU. A necessidade do AO90 para a língua portuguesa ser língua oficial da ONU é, como dizem os brasileiros, conversa para boi dormir.

2. Recentemente, durante um debate no fórum “Potencial das línguas na recuperação das economias: espanhol e português”, promovido pela Organização dos Estados Ibero-americanos, o assunto do português como língua oficial da ONU voltou à baila. Luís Faro Ramos, presidente do Camões I.P., respondeu à pergunta “o que é que está a fazer de concreto para que o português seja língua oficial nas Nações Unidas?”. Faro Ramos começou por considerar que a consagração pela UNESCO do dia 5 de Maio como o dia mundial da língua portuguesa fora um passo muito importante nessa direcção e por sublinhar o compromisso existente entre todos os países da CPLP nesse sentido. Depois, o presidente do Camões, I.P. chamou a atenção para a necessidade de haver mais intérpretes e mais tradutores de língua portuguesa. “Mas há falta de pessoas com essas características?”, perguntou a moderadora. “Sim, sim. Sim, sim”, respondeu Faro Ramos, continuando com um enigmático “não estamos ainda num ponto em que possamos dizer que o temos”.

Desconheço os números de que dispõe o presidente do Camões, I.P. para sublinhar a falta de intérpretes de língua portuguesa. Sou intérprete nas instituições da União Europeia (UE) há 18 anos e não tenho dado pela falta de intérpretes de cabina portuguesa no mundo institucional. Percorrendo uma lista igualmente aqui à minha frente, restringindo-me aos intérpretes de língua portuguesa que actualmente trabalham de forma permanente ou regular para as instituições da UE, estamos a falar de quase cem intérpretes, somando cerca de 40 funcionários (entre Parlamento Europeu, SCIC e Tribunal de Justiça) e 60 intérpretes independentes. Conheço colegas intérpretes de outras cabinas, funcionários do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, que fazem frequentemente comissões de serviço na ONU. Por isso, o universo de intérpretes disponíveis para trabalharem na ONU não se limita a futuros funcionários da organização, o leque é muito mais alargado.

Por vezes, como agora, em tempos de Covid-19, não há é trabalho suficiente para os intérpretes que já existem. Aliás, durante a comunicação anterior à declaração polémica, Faro Ramos até referiu o aspecto da actual redução do trabalho dos intérpretes. Os números por mim apresentados limitam-se aos intérpretes à disposição das instituições da UE. Falta ainda mencionar os colegas que nunca colaboraram com estas instituições, espalhados por todos os cantos do mundo e, de certeza, muitos deles com qualidade para trabalharem na ONU. Agora, tudo depende de políticos e diplomatas fazerem o seu papel e conseguirem levar o barco do português como língua oficial da ONU a bom porto. Aguardo com impaciência uma resposta do presidente do Camões, I.P., com números concretos, para saber o porquê de ter dado a entender a míngua de intérpretes de língua portuguesa no mercado. Não será certamente por falta de intérpretes que a língua portuguesa deixará de ser língua oficial da ONU.

Nótula 1: Quanto ao tema português língua oficial da ONU, recomendo a excelente nota “O acordo ortográfico, o português nas Nações Unidas ou uma história (muito) mal contada”, de João Roque Dias.

Nótula 2: O presidente do Camões, I.P. referiu igualmente a escassez de tradutores. Infelizmente, não disponho de informação sobre o número de tradutores de língua portuguesa no activo e com qualidade para trabalharem na ONU. Fico à espera dos números que Luís Faro Ramos fará o favor de divulgar.

Sugerir correcção