Haja vergonha!

Esperava-se e exigia-se, portanto, por parte de quem nos governa, a sobriedade nos comportamentos e a honestidade nos discursos, adequadas à emergência da época.

As imagens e os discursos propagandísticos feitos à boleia da realização, em Lisboa, da fase final da Champions constituem um tristíssimo episódio, até para um país como o nosso que, por tradição, está bastante habituado a conviver com episódios confrangedores, suscitados, justamente, por aqueles que deveriam, por inerência de funções e consciência de serviço público, pautar a sua conduta pela seriedade e pela discrição.

E se o deveriam fazer sempre e em qualquer circunstância, mais o teriam de fazer nestes tempos, em que ao temor perante a doença se juntam os mais variados temores acerca da incerteza do futuro e se juntam, sobretudo, as situações de efectiva dificuldade a ser vividas, já, por tantos portugueses, para quem o layoff não será mais do que uma antecâmara do desemprego, que se vêem incapazes de manter os seus pequenos negócios, ou que desesperam por consultas e cirurgias adiadas.

Porque os números que, de momento, vamos tendo – e que são suficientemente assustadores, por mais que o governo os tente desvalorizar - são os das vítimas directas da doença, sendo que todos intuímos o descalabro que será revelado, quando se tentar fazer uma contabilização das vítimas indirectas desta pandemia.

Esperava-se e exigia-se, portanto, por parte de quem nos governa, a sobriedade nos comportamentos e a honestidade nos discursos, adequadas à emergência da época.

Mas, em vez disso, o que temos é desrespeito pela nossa inteligência e pelo nosso sofrimento colectivos.

Desrespeito pelos mais velhos, assustados e isolados da família, que estão a viver, em vida, uma intermitência de morte.

Desrespeito por quem vê ruir o pequeno negócio que era o seu sustento e era, tantas vezes, o sonho e o investimento de uma vida.

Desrespeito pelos que já perderam, ou perderão, o emprego, e pelas famílias que já estão a viver, ou viverão, grandes dificuldades económicas.

Desrespeito por quem não consegue proteger-se e proteger os outros, porque as condições da sua habitação o não permitem.

Desrespeito pelos que, por razões profissionais, se expõem todos os dias ao risco de contágio e sentem, por causa disso, ter-se convertido numa ameaça para os que mais amam.

Desrespeito por quem está doente e com medo.

Desrespeito por todos os que perderam alguém em consequência da pandemia e desrespeito por quem morreu.

Finalmente, desrespeito por todos nós, portugueses, que vivemos na incerteza e no medo, e que sabemos ler, nos números, a ameaça e a anormalidade que o governo, na sua obsessão por ficar bem no retrato, teima em negar, nomeadamente, insistindo em manter no domicílio, sob o pretexto da “leveza” dos sintomas, pessoas que não têm condições habitacionais e económicas para cumprir um isolamento e que, por isso, constituem um efectivo risco para a disseminação do vírus na comunidade.

Não é necessário grande esforço de análise para percebermos que a intenção é, unicamente, a de manter a aparência – e, tristemente, parece que só isso interessa - de resposta suficiente de um Serviço Nacional de Saúde, que tem vindo a ser delapidado de forma contínua, e cuja capacidade já estava reconhecidamente comprometida, em circunstâncias normais de prestação de cuidados à população, ou seja antes da covid-19.

Mas não pode valer tudo em nome das aparências, nem pode, sequer, valer tudo em nome da salvação da economia, e a obrigação ética e cívica das autoridades políticas, em contexto de democracia, é, em primeiro lugar, a o do respeito pelos cidadãos.

Os toques de cotovelo em manifestações de regozijo institucionais e a retórica balofa e laudatória pela realização da Champions são a negação consumada desse respeito. Haja vergonha!

Sugerir correcção