O fim do luso-tropicalismo?

À medida que a memória (e a vivência) da experiência colonial se afasta no tempo mais as novas gerações – da Esquerda e da Direita – começam a pensar e a agir libertas da influência do nacionalismo cultural que moldou as gerações anteriores. E esta mudança geracional tem – e já começa a ter – consequências na cultura política portuguesa.

A primeira geração de políticos do pós-25 de Abril dedicou-se de alma e coração a exaltar o “destino” europeu de Portugal. E fê-lo como nunca tinha sido feito ao longo da história. Em 1976, num discurso no Conselho da Europa, José Medeiros Ferreira foi lapidar: com o 25 de Abril “Portugal volta por fim oficialmente à convivência com a Europa”. Esse era “um acto” que exprimia “a consciência do nosso destino histórico”. Era, nas palavras do então ministro dos Negócios Estrangeiros, “o regresso de Portugal às suas raízes continentais”.

Mas, e isso ficou claro nas décadas seguintes, as outras “raízes” transcontinentais – e que estão na base do famoso luso-tropicalismo do Estado Novo e da sua ideologia colonial –, essas raízes eram ainda mais profundas, e permaneceram sempre no discurso das elites (politicas e não só) até aos dias de hoje. A esse nível – dessa visão da experiencia colonial portuguesa como “assimiladora”, “única” e sem as “intolerâncias dos outros” – não houve uma ruptura ideológica entre as elites do antes e do depois. Antes falava-se em luso-tropicalismo, agora fala-se em lusofonia. Mas a matriz dos dois é a mesma: são nomes diferentes para o mesmo nacionalismo cultural que, ainda hoje, é a ideologia oficial do Estado português. 

E que nacionalismo cultural é esse? Em primeiro lugar, é a ideia do excepcionalismo lusitano, a longa tradição de eleição na história de Portugal. O sentimento de que Portugal se enquadra na tradição dos povos missionários, eleitos para liderar e, no fim, transformar o mundo. Se à França, desde o início, se atribuiu a Gesta Dei per Francos, e a Inglaterra e os Estados Unidos, em diferentes momentos, foram vistos como a “Nova Israel”, também Portugal, na sua historiografia, foi visto como uma espécie de “menino Jesus das nações”, como notou esse psicanalista da história lusa chamado Eduardo Lourenço. Nesta visão, que reemerge ao longo dos tempos de diferentes formas e feitios, o imaginário dos descobrimentos, e da expansão ultramarina, é fundamental. 


E daqui parte a segunda grande dimensão desta mitologia nacional, ou seja, o universalismo português. A ideia é simples: é a ideia de que Portugal provou, ao longo da história, ter desenvolvido um modelo de convivência entre os povos que é superior. E é esse humanismo e ecumenismo português que distingue a experiência portuguesa no mundo. 
E a Lusofonia é a manifestação contemporânea, com novas vestes e novos ares, destes dois grandes esteios do nacionalismo cultural da nação portuguesa. E por isso, dentro desta perspectiva, a Lusofonia é um mito. E é um mito de refundação nacional: redefinir e revalorizar o papel de Portugal no mundo; reaproximar Portugal do seu destino; impulsionar e projectar o “modo português de estar no mundo” visto como único, ecuménico e humanista (como afirmou o economista e pensador português Ernâni Lopes, e grande defensor da Lusofonia, “nós [nós portugueses] só somos nós quando formos para além de nós”).

Este nacionalismo cultural é intuitivo e instantâneo. Naturalmente aceite, ele nem sequer é visto, ou racionalizado, como nacionalismo. E nós sabemos que uma ideologia, seja ela qual for, triunfa, ela verdadeiramente triunfa, quando não é sentida como ideologia mas como senso comum. Ninguém pensa na composição química do ar que respiramos, limitamo-nos a respirar. O mesmo se passa com uma ideologia triunfante. E como os restos do império perdido, ela encontra-se em quase todo o lado.

Mas, em 2020, o consenso político à volta deste imaginário parece estar a ruir. À Esquerda – sobretudo no Livre, no Bloco, mas também nalguns sectores socialistas –, a crítica ao passado colonial português acirra-se, desmonta-se a ideia de um qualquer “excepcionalismo” Luso, o anti-racismo arregaça as mangas, e esgrimem-se conceitos como o “racismo estrutural” da sociedade portuguesa, surgindo até novidades no vocabulário como a denúncia do “privilégio” branco e da “opressão” branca que impedem o sonho da igualdade racial. E muito deste activismo vem de jovens – jovens esses muito mais influenciados por movimentos globais de protesto, e por redes virtuais de mobilização. E à Direita – e a direita portuguesa sempre foi, ao longo de décadas, muito devedora desse suposto “universalismo” português – algo está a mudar. Mas essa mudança não vem do PSD, nem do CDS. E não vem apenas exclusivamente do Chega, embora abranja certos sectores do partido. Até porque no interior do Chega – como revela Riccardo Marchi no seu livro brilhante sobre a sua alvorada – existe uma tensão entre o nacionalismo cultural, universalista, e o nacionalismo étnico, mais particularista. Essa mudança também se manifesta numa reacção cultural, também de jovens, que sentem que o imaginário da lusofonia impede Portugal – num contexto de transformação multicultural e multiétnica, tal como noutros países da Europa Ocidental – de defender a sua identidade primária, continental, e europeia.

O que parece estar então a acontecer é um momento de transição: uma mudança de mentalidades. À medida que a memória (e a vivência) da experiência colonial se afasta no tempo mais as novas gerações – da Esquerda e da Direita – começam a pensar e a agir libertas da influência do nacionalismo cultural que moldou as gerações anteriores. E esta mudança geracional tem – e já começa a ter – consequências na cultura política portuguesa. Mas estamos no início desse processo. É como se estivéssemos entre dois mundos – um que parece estar a morrer – e um outro, novo, que ainda não nasceu, mas do qual já se sente, a cada dia que passa, a presença.

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