Em vez da vacina, levámos com uma anestesia

O arranque do desconfinamento foi muito mal gerido e só pôde aguentar-se sem críticas por causa do efeito da anestesia geral a que nos querem submeter.

1. Esperávamos uma vacina e saiu-nos uma anestesia. Para a liberdade de um povo, tão mau como o estado de emergência só o estado de letargia. Os sinais de que vivemos em estado de anestesia política, largamente potenciado pela pandemia e oportunamente aproveitado pelos mais lestos protagonistas políticos, são muitos e variados. Esta letargia política é malsã, debilita muito a democracia e pode, no futuro, abrir a porta a caminhos perigosos. A democracia nunca está garantida; os desígnios políticos de Morfeu são ínvios.

2. O entorpecimento político – promovido pelo primeiro-ministro mas infelizmente também induzido pelo Presidente da República – visou, em primeiro lugar, que ninguém pudesse criticar a gestão “sanitária” da pandemia. E, por isso, andámos há semanas e semanas a contemporizar com o agravamento da situação em Lisboa e Vale do Tejo e a fechar os olhos às dezenas de sinais errados e contraditórios que nos são dados pelos mais altos responsáveis políticos. Nos últimos dias, muito por obra da imprensa internacional, da posição de vários Estados europeus e do erro crasso da “cimeira” comemorativa da Liga dos Campeões, o panorama mudou ligeiramente. Mas o condicionamento imposto pela indução do adormecimento, mesmo assim, tem calado muitas das críticas. Ao contrário do que alguns procuram indiciar, o problema não está na estratégia de desconfinamento, que porventura até peca por escassa (como tão bem tem sido observado na área educativa). O problema está na comunicação e na mensagem que o Governo quis fazer passar. Primeiro, procurando aproveitar politicamente um alegado sucesso português – a célebre tese do “milagre” –, que, em rigor, não existe nem existiu. Tivemos uma prestação mediana que compara bem com os casos mais negativos, mas não um “milagre”. Segundo, criando excepções incompreensíveis como as que foram dadas à CGTP e ao PCP ou a das manifestações anti-racismo (por mais justas que fossem). Houve sempre um duplo padrão e, em sede de credibilidade e autoridade moral, isso é fatal. Quem está em casa e fez um esforço descomunal para cumprir as regras, não compreende nem aceita os tratamentos de favor, aliás nunca justificados. Terceiro, porque tanto o primeiro-ministro como o Presidente da República se desdobraram em incontáveis números mediáticos (idas a restaurantes, a praias, a mercados, a mergulhos, a espectáculos, a concertos) que passam uma mensagem confusa e contraditória quanto ao modo como devemos encarar o desconfinamento. O que se esperava era um anúncio sóbrio das novas possibilidades, um convite à reactivação da vida normal, mas com moderação e com cuidado. Quando a toda a hora e em qualquer esquina, se deixam ou se fazem entrevistar, esses altos dignitários criam e corroboram a ideia de uma falsa normalidade e dão pretextos aos mais recalcitrantes. Podem até repetir o mantra dos bons conselhos, mas a liderança faz-se pelo exemplo, não exactamente pela palavra. Em suma, o arranque do desconfinamento foi muito mal gerido e só pôde aguentar-se sem críticas por causa do efeito da anestesia geral a que nos querem submeter.

3. O excesso de confiança municiado pela teia do silenciamento e pela ausência de crítica levou à prática de dois erros crassos na semana que passou. Um foi a já referida “cimeira do futebol”, que ultrapassa todos os níveis de sensibilidade, bom senso e até respeito. Nada contra a Liga dos Campeões em Lisboa, desde que cumpra as regras do “bom” desconfinamento; mas um país que vive um transe de crise sem paralelo não é dado a excitações nem a vibrações. Outro foi a deriva populista nacionalista do Governo – e, em particular, do ministro malhador Santos Silva – quanto às restrições à liberdade de circulação dos portugueses em alguns países europeus. Por um lado, nenhum país condicionou directamente a entrada de portugueses enquanto tais; mas de todos os nacionais provenientes de países com certos índices. Por outro, Portugal, contra as indicações europeias e por vontade unilateral, mantém fechadas as suas fronteiras com Espanha (por vontade unilateral porque a Espanha já abriu as restantes fronteiras). Não pode, por isso, dar lições a ninguém quanto ao cumprimento dos critérios europeus. Finalmente, porque o problema não está necessariamente nas decisões desses países, mas na persistência das taxas de novas infecções. As agências e os turistas vão olhar para os números; não para as decisões formais. A solução não é, por isso, fazer bravatas nacionalistas provincianas e bacocas, mas trabalhar para baixar o número de novas infecções.  

4. Mesmo depois da meia “inversão” política de ontem, não pode ser saudável uma democracia em que o primeiro-ministro ocupa molecularmente todo o espaço televisivo e noticioso. Ocupa larga e despudoradamente os ecrãs e as páginas reais ou digitais dos jornais. Desde que fomos assolados pelo coronavírus, António Costa dá entrevistas de fundo e de ocasião; faz visitas e conferências de imprensa todos os dias. Vai da rádio ao restaurante, da televisão à praia, do Conselho Europeu ao Campo Pequeno. E não há sítio onde vá nem esquina em que se esconda em que não surjam microfones e câmaras. Quando se julgava que ninguém podia ombrear com a omnipresença mediática de Marcelo, António Costa conseguiu levar-lhe a palma. A sua presença mediática tornou-se viral e ocupa, “bigbrotherianamente”, todo o espaço comunicacional. A propaganda socrática era claustrofóbica. A propaganda “costista” é morfina democrática da mais pura: anestesia e hipnotiza.

Estamos a chegar a uma altura em que já não basta criticar aguda e pontualmente a gestão da crise e apresentar ordeira e construtivamente políticas alternativas. É preciso fazer algum barulho e até dar um ou outro abanão. Não podemos viver em anestesia democrática até que apareça a vacina. O destino da democracia não pode ser o da bela adormecida.

SIM e NÃO

SIM Necessidade de reabrir as escolas. Os alunos e os pais têm muito a agradecer a Aguiar-Conraria, Homem Cristo, Susana Peralta, J.M. Tavares e tantos outros. Estão cheios de razão; precisam do nosso apoio.

NÃO MNE Santos Silva. No COREPER de ontem, foi a (falta de) posição de Portugal que impediu que o Conselho aprovasse a declaração sobre a Conferência sobre o Futuro da Europa. Palavras para quê? 

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