Braga vive um São João contido e vazio onde nem o Rei David aparecerá

A Avenida da Liberdade repleta de multidão é uma imagem que não se vai repetir no São João de 2020. As alusões à festa pela cidade são contidas e muitos dos locais que habitualmente concentram pessoas estão vazios.

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PAULO PIMENTA

Junto à Igreja de São João de Souto, lugar onde terá surgido o culto da cidade de Braga ao santo, em 1150, não se vislumbra qualquer movimento ao fim de tarde. Nas ruas ali próximas, há quem caminhe e há quem se sente nas esplanadas, mas os sinais de que o São João está a chegar são ténues: um manjerico de papel numa montra, por exemplo. Só quando se chega à Praça da República, é que se tem a certeza de que é tempo de festa: uma imagem do santo popular repousa sobre o chafariz, com fitas amarelas e azuis à volta. Enquanto olha para o chafariz, Maria Teresa Santos lamenta um São João mais “triste” do que os outros. “Por norma, esta praça e a avenida da Liberdade estão cheias de gente. Neste ano, não”, diz.

Natural de Braga, Maria Teresa viveu 40 anos nos Estados Unidos como emigrante e regressou de vez à sua cidade há 11. Mais do que a noite de 23 de Junho, vai sentir falta da manhã de 24. “O que mais gostava de fazer era levantar-me de manhã, vir para aqui tomar o café e esperar o Carro do Rei David”, confessa, referindo-se a uma apresentação teatral relacionada com a personagem bíblica, com 13 elementos num carro alegórico.

Ao lado, Luísa Braga, de 69 anos, diz sentir falta da “música, dos ranchos folclóricos, dos bombos, dos gigantones” e, sobretudo, da “alegria” vivida na rua, em tempos de São João. Habituada a iniciar a noite de São João em família, com a “sardinha assada, a broa e o caldo verde” na mesa, Luísa decidiu, neste ano, jantar num restaurante do centro da cidade.

A actividade dos restaurantes na noite de São João está, porém, limitada pela Câmara Municipal de Braga. O uso de grelhadores no exterior dos estabelecimentos, algo habitual em anos anteriores, foi proibido, definiu o autarca Ricardo Rio.

O São João é, porém, uma festa que se estende desde o centro histórico até à capela de São João da Ponte, edificada em 1616, junto ao rio Este. A Avenida da Liberdade é a artéria que liga estes dois focos e dá vida a toda a celebração. Mas, em tempos de pandemia, a antecipação da festa é contida: nas varandas da avenida, só pontualmente se vêem umas fitas e uns balões garridos. No parque da Ponte, as diversões nem vê-las e as roulottes das farturas resumem-se a meia dúzia. “Impusemos algumas regras para não permitir que nenhum espaço tivesse esplanada e consumo no local. Impusemos distanciamento entre os operadores”, explica o presidente da Câmara.

Numa dessas roulottes, Cláudia Rodrigues vai vendendo farturas de sabores vários a clientes que decidiram aparecer mais cedo do que é habitual na noite de São João. “As pessoas estão a levar as farturas para casa. Nos anos anteriores, passavam por aqui mais tarde”, explica. Ao fim de cinco anos de São João, Cláudia admite que as vendas estão “muito mais baixas” do que em anos anteriores, mas servem, pelo menos, para “amenizar” a situação que vive desde o início da pandemia, com as festas todas canceladas. “Desde Março, não tivemos hipótese de trabalhar”, afirma.

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No São João com as recomendações de saúde pública mais apertadas de que há memória, a polícia também vai estar atenta a possíveis aglomerações, com um contingente de agentes “reforçado”, adiantou ao PÚBLICO fonte da PSP. Perante este cenário, espera-se uma noite como muitas outras, em Braga. “Há de haver pessoas que vão para o centro nesta noite como noutro dia qualquer, até porque está bom tempo, mas não no contexto de São João”, sublinha Ricardo Rio.

Uma celebração confinada à Internet… com uma excepção

Mas há quem tente dar a volta à situação. “Este São João é completamente diferente, sem o stress do ano passado”, confessa Firmino Marques, presidente da Associação de Festas do São João de Braga desde Março de 2019. Também ele, ao longo dos 62 anos de vida, se habituou a viver a festa nas ruas de Braga, percorrendo aquilo que designou de “triângulo perfeito”: a capela de São João do Souto, agora uma igreja do centro histórico, onde surgiu o culto no ano de 1150, a Arcada, “sala de visitas da cidade”, na Praça da República, e a descida a pé pela avenida da Liberdade até à capela de São João da Ponte.

Mas o “menor movimento nas ruas”, com a população a tentar “levar à risca as recomendações de saúde”, não esvazia necessariamente o “espírito sanjoanino”, reitera. Para substituir as celebrações presenciais, canceladas em 30 de Março, a organização montou um estúdio para transmitir por vídeo alguns dos números mais conhecidos do São João, como a Dança do Rei David. “A única representação que tivemos de excluir é a do Carro dos Pastores. O número é feito num carro com mais de 60 anos, que não pode ser levado ao estúdio”, explica Firmino Marques.

Elaborado para a transmissão nas redes sociais, o programa começou em 15 de Junho e encerra nesta quarta-feira, tendo já atraído “centenas de milhares de visualizações”, afirma o mesmo responsável, vereador da Câmara Municipal de Braga entre 2013 e 2019 e deputado na Assembleia da República desde as últimas Legislativas. O impacto do programa digital é notório junto dos emigrantes. “Temos recebido mensagens de milhares de portugueses que, no estrangeiro, não têm possibilidade de estar connosco nesta altura”, conta.

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Ciente de que o São João de 2020 é diferente dos anteriores, a associação decidiu pedir às pessoas que acompanham a festa pelas redes sociais para enviarem fotografias ou vídeos de “celebrações em família”. A ideia, reitera Firmino Marques, visa registar um momento que deve “marcar a história” da comemoração sanjoanina em Braga.

Há, porém, uma excepção ao confinamento: com capacidade reduzida para 920 espectadores, o maior auditório do Altice Forum Braga acolhe, na noite de terça-feira, um concerto dos Amor Electro. O evento vai realizar-se, porque as receitas destinam-se, na íntegra, para o projecto Housing First, promovido pela delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa para apoiar as pessoas sem-abrigo. “No final de 2019, incluímos nos estatutos da associação de festas o Fundo Social Sanjoanino. Temos de estar ao lado da Cruz Vermelha neste projecto, para, pelo menos, garantirmos uma casa que pode dar para uma pessoa ou, pelo menos, para três ou quatro, se for partilhada”, explica Firmino Marques.

Em 2021, ano em que está prevista a apresentação de uma nova versão do cancioneiro sanjoanino, elaborada pelo músico bracarense Daniel Pereira Cristo, o presidente da associação de festas espera um São João com aglomerações na rua, mas também nas redes sociais, face às ligações estabelecidas com pessoas de várias partes do mundo neste ano. “Pelas centenas de mensagens que temos recebido, vamos ter de levar parte do programa de 2021 pelo mundo fora. Sensibiliza-nos sobremaneira a forma como as pessoas agradeceram este São João digital fora do nosso país”, antecipa.

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