Aeroporto da Portela: o risco não calculado para Lisboa

Apesar de o risco para a cidade não ser desprezável – porventura a probabilidade de Pedrógão acontecer era inferior –, o Governo e as autoridades têm-no negligenciado.

O avião é um modo de transporte altamente seguro, e por isso o risco de acidente num voo em particular é negligenciável – estatisticamente, dão-se cerca de três acidentes por cada milhão de voos comerciais, a maior parte sem vítimas. Contudo, uma vez que os grandes aeroportos registam largos milhares de movimentos por ano, o risco de acidente aéreo em torno de um desses aeroportos é bem real. O aeroporto Humberto Delgado na Portela em Lisboa, com 220.000 movimentos em 2019 – cerca de 600 voos por dia, com picos acima dos 700 – e 31 milhões de passageiros, o que o coloca entre os 20 maiores aeroportos europeus, não é excepção. Numa altura em que as suas obras de expansão avançam a todo o vapor, recebendo com pompa e circunstância a visita dos mais altos governantes do país, e o primeiro-ministro anuncia o retomar da actividade deste aeroporto, que depois das obras ficará entre os dez maiores da Europa, este risco tem de ser discutido, não podendo continuar a ser convenientemente varrido para debaixo do tapete pelas autoridades.

Os grandes aeroportos são hubs que fazem convergir para si muitos aviões que na sua fase de cruzeiro estão dispersos por vastas áreas do território, concentrando tráfego aéreo em pequenas zonas geográficas. Por outro lado, é nas fases de partida e chegada dos aviões que ocorre cerca de 80% de todos os acidentes aéreos envolvendo mortos (estas fases de voo constituem menos de 5% do tempo total dos aviões no ar, mas é nelas que os acidentes se concentram porque, sendo as mais exigentes do ponto de vista aeronáutico, é onde se dão mais falhas técnicas e humanas); por exemplo, os Boeing 737 Max envolvidos em acidentes em 2018 e 2019 caíram pouco depois de descolarem, e o Boeing 737-800 que em 2009 se despenhou na zona de Amesterdão caiu a 1,5km da pista onde ia aterrar. É por estes motivos que nas zonas limítrofes a aeroportos a população residente e estruturas existentes estão sujeitas a um risco de acidente aéreo não desprezável.

Embora haja trágicos exemplos de acidentes aéreos registados em denso meio urbano, como o do Boeing 747 que em 1992 caiu num edifício residencial em Amesterdão matando 43 pessoas, ou o do Concorde que em 2000 caiu num hotel em Paris matando 113 pessoas, felizmente são raros, pois geralmente os aeroportos localizam-se, não por acaso, suficientemente longe de grandes aglomerados populacionais e urbanos. Excepto o da Portela, que se localiza no interior do perímetro da cidade de Lisboa, rodeado de bairros residenciais, como os de Alvalade e alguns do concelho de Loures, de escolas, como o Colégio Moderno, de universidades, como várias faculdades da Universidade de Lisboa e a Lusófona, de hospitais, como o de Santa Maria, jardins, como o do Campo Grande, e importantes vias de comunicação, como a Segunda Circular. Os aviões que aterram ou descolam da Portela passam directamente por cima ou muito perto de todos estes locais, sobrevoando uma faixa considerável de cidade a baixa altitude, onde vivem, trabalham e estudam muitos milhares de pessoas. Isto faz deste aeroporto o que, de longe, mais população afecta em toda a Europa – moram 400.000 pessoas num raio de 5km em seu redor, 15% muito afectadas. Se a probabilidade de acidente não aumenta por esse motivo, o risco societal aumenta muito, pois as consequências de um desastre aéreo em tais locais são gravíssimas.

Mas qual a probabilidade efectiva de um acidente aéreo em Lisboa? Se se pegar em estatísticas de acidentes aéreos envolvendo vítimas mortais (excluindo acidentes relacionados com terrorismo) em redor ou no interior de aeroportos com perfis de operação e tráfego aéreo semelhantes aos do da Portela, e se aplicar as condições de operação da Portela, chega-se à conclusão que essa probabilidade é de cerca 2% num ano. De 2020 até ao fim do período de concessão do aeroporto, 2062, a probabilidade acumulada de haver um acidente aéreo grave em Lisboa é de aproximadamente 52%, ou seja, fifty-fifty. Alguma desta probabilidade é de que o acidente aconteça dentro do aeroporto, mas em larga medida é fora, principalmente sob os corredores aéreos.

Esta estimativa ignora efeitos de o aeroporto trabalhar no limiar da sua capacidade máxima, portanto sob stress aeronáutico, e de crescimento futuro em tráfego, factores que fazem subir a probabilidade. Por outro lado, trata-se de uma estimativa que não tem em conta a distribuição de acidentes conforme a fase de voo; por exemplo, estatisticamente os acidentes ocorrem mais nas fases de aproximação final à pista e aterragem do que nas fases de descolagem e subida inicial. Uma vez que primordialmente os aviões sobrevoam Lisboa antes de aterrar, isto faz elevar o risco sobre Lisboa e diminuir sobre Camarate. Esclareça-se que, contrariamente à visão tecnologicamente mirifica de alguns, a aviação em geral já obedece a rigorosas normas de segurança dificilmente melhoráveis; além disso, os aviões de médio e longo curso nas próximas décadas continuarão a ter a mesma base tecnológica, e portanto manter-se-ão ruidosos, poluentes e a apresentar o mesmo risco de acidente.

Para o cálculo mais fino da probabilidade conforme a área geográfica, e obtenção das respectivas curvas de risco, deverá recorrer-se a modelos de avaliação de risco aeronáutico. Trata-se de uma avaliação indispensável para informação da população e autoridades municipais e regionais de Lisboa, que deveria ser tida em conta no Plano Director Municipal, nos planos estratégicos de desenvolvimento e nos de emergência da Protecção Civil. Deveria ainda constar de uma avaliação ambiental estratégica do projecto aeroportuário para a região de Lisboa e de uma avaliação de impacto ambiental à expansão da Portela, sendo um requisito implícito já desde Directiva 85/337/CEE relativa à avaliação dos efeitos de projectos públicos e privados no ambiente.

Em suma, apesar de o risco para a cidade não ser desprezável – porventura a probabilidade de Pedrógão acontecer era inferior –, o governo e as autoridades têm-no negligenciado. Estará relacionado com a probabilidade de no decorrer de uma legislatura de quatro anos haver cerca de 93% de hipóteses de tudo correr bem? O risco de segurança é só um exemplo dos vários problemas ambientais relacionados com o aeroporto da Portela que são descurados, e a decisão de expandi-lo, política, carece de fundamentos técnicos e científicos, sendo que os cidadãos, os afectados, não foram metidos nem achados nela. A expansão trará ainda mais ruído, poluição e risco para a cidade, mas aquilo de que os decisores políticos falam é somente nos passageiros e aviões adicionais que ela permitirá, e quantos mais turistas chegarão, sem reflexão sobre as consequências no território.

As obras na Portela são o início de um ambicioso alargamento deste aeroporto – é mais caro do que todo o novo aeroporto do Montijo –, e significam o oficializar da passagem desta infra-estrutura de provisória, como sempre foi até ao momento, a definitiva. No caso do projecto do aeroporto do Montijo tem havido um salutar escrutínio por parte sociedade civil e imprensa, mas já no caso da Portela isso infelizmente verifica-se menos, senão existiria um clamor sobre a ausência de avaliação de impacto ambiental desta expansão, legal e eticamente obrigatória. Isto acontece porque o processo de expansão da Portela tem sido bastante opaco, e os cidadãos não estão informados dos seus efeitos. Contudo, é sobre as suas cabeças que os aviões mais cedo ou mais tarde voltarão a voar a cada dois minutos.

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