História e Cinema

E Tudo o Vento Levou mostra um Sul romântico que nunca existiu, imaginado por uma América anterior ao deflagrar dos movimentos pelos Direitos Cívicos. Um reflexo de um certo imaginário norte-americano sulista – branco, evidentemente – sobre o seu passado, como nós temos as obras de Leitão de Barros ou de Jorge Brum do Canto. Deve ser contextualizado? Decerto, como tantos outros que merecem tal tratamento.

Recebi há dias uma mensagem de uma pessoa a quem, por motivos profissionais, havia recomendado a visualização de um filme. A mensagem era: “a história é real?” Eu tinha muito a dizer acerca da “realidade” do filme, mas a minha resposta foi hesitante e ficou-se por um confortável e preguiçoso “quase nada real, quase tudo ficção”. A obra em causa é Urumi – The Warriors Who Wanted to Kill Vasco da Gama, uma grande produção indiana de 2011 cuja ação decorre nos inícios do século XVI e na qual os portugueses são os vilões. Está cheia de erros e incorreções históricas, o argumento é pobre e os personagens são caricaturais no seu maniqueísmo. Porém, eu recomendo-a (está disponível no YouTube, legendada em inglês) e mostro-a nas minhas aulas, não para avaliar a sua “veracidade” mas para estimular o sentido crítico de quem a vê e demonstrar que os nossos heróis podem ser – e são, mais vezes do que gostaríamos – vilões noutras partes do mundo. A visualização do filme requer, naturalmente, o devido enquadramento, a vários níveis: os factos que relata e a época em que decorre a ação, mas também a intenção, o significado e o sentido que os seus autores lhe atribuíram e a forma como nós os entendemos. Eles lá, na Índia, e nós cá, em Portugal.

Vem isto a propósito das notícias acerca da suspensão do E Tudo o Vento Levou do catálogo da HBO nos EUA. Houve reações imediatas, entre concordâncias e acusações de censura ou de cedência à pressão do momento ou ao “politicamente correto”. Aparentemente, a obra será oportunamente reposta, devidamente acompanhada de informação sobre o seu contexto histórico. Parece simples, mas suscita questões complexas. E Tudo o Vento Levou, como Urumi ou, em boa verdade, qualquer outro filme ou série do “género histórico”, necessita de contextualização; não uma, mas várias, porque incide sobre o passado – o nosso e o alheio –, algo simultaneamente sagrado e profano: sagrado, porque envolve raízes, memória coletiva e identidade; profano, porque versátil, difuso e imaterial, que pode ser mexido e tratado à medida de cada vontade e de cada olhar.

Foto
Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) e Mammy (Hattie McDaniel) em E Tudo o Vento Levou DR

Ver uma obra cinematográfica deste género é, sobretudo, olhar para a perspetiva da época que a produz, não é uma viagem no tempo. Mesmo que assim a consideremos – é um dos encantos do cinema – trata-se, então, de uma dupla viagem ao passado, com um ponto de partida bem definido, hoje, em 2020: no caso do E Tudo o Vento Levou, à época da Guerra de Secessão norte-americana, mas também a 1939.

Na verdade, um filme “histórico” revela mais sobre o tempo em que foi feito do que sobre a época que pretende retratar, o que nem sempre é compreendido. Vi o Spartacus, de Stanley Kubrick, quando era muito jovem e fiquei horrorizado com a forma como é ali mostrado o protagonista e as suas intenções: um herói libertário e humanista, um abolicionista com dois milénios de avanço. Odiei o filme e não compreendi, nessa altura, como é que um realizador como Kubrick – autor do 2001, que então tinha por expoente máximo da arte cinematográfica – podia ter realizado semelhante aberração “histórica”. Faltava-me uma peça no quadro, que obtive mais recentemente ao ver um outro filme, Trumbo, a história de Dalton Trumbo, o argumentista de Spartacus perseguido nos EUA devido às suas opiniões políticas. Spartacus é uma denúncia da opressão e um monumento à liberdade. O personagem histórico que dá nome ao filme, assim como a Roma contra a qual este se revolta, são apenas motes que Trumbo glosa à luz dos EUA na década de 1950.

Portanto, E Tudo o Vento Levou mostra um Sul romântico que nunca existiu, imaginado por uma América anterior ao deflagrar dos movimentos pelos Direitos Cívicos. Um reflexo de um certo imaginário norte-americano sulista – branco, evidentemente – sobre o seu passado, como nós temos as obras de Leitão de Barros ou de Jorge Brum do Canto. Faz parte da sua essência cinematográfica. Deve ser contextualizado? Decerto, como tantos outros que merecem tal tratamento. Fará algum sentido ver O Nascimento de Uma Nação, The Sheik, The Lone Ranger, 55 Dias em Pequim ou os filmes de Fu Manchu (nem falo das obras de Leni Riefenstahl ou do infame Jud Süß) sem os devidos enquadramentos acerca do contexto em que foram produzidos ou os estereótipos que transmitem de forma intencional ou involuntária? O mesmo é válido para tantas filmes ou séries “históricas” populares no nosso tempo, impregnados de estereótipos e preconceitos mas que nos passam frequentemente despercebidos: o Jesus loiro e de olhos azuis em Jesus de Nazaré, os espanhóis em Elizabeth – A Idade de Ouro, os chineses na série Kung Fu, os tailandeses em O Rei e Eu, os hindus em Indiana Jones e o Templo Perdido, os otomanos em Lawrence da Arábia, os (deuses) egípcios em Gods of Egypt, os somalis em Black Hawk Down, os japoneses em Shogun ou em O Último Samurai, os persas em 300. Ou os portugueses em Urumi, naturalmente. Apenas cinema, no fundo, algo que por vezes parece ser indevidamente esquecido.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção