A pornografia da dor

A pequena Valentina foi assassinada sim, não uma, mas muitas vezes. Foi assassinada no momento em que lhe tiraram a vida e foi, depois, assassinada e profanada por cada um de nós, na nossa morbidez e no nosso desrespeito.

Infelizmente, vão-se sucedendo os exemplos de uma abjecta devassa da dor privada, não apenas numa certa comunicação social – curiosamente de ampla procura – quanto nesse moderno terreiro da justiça popular, em que se converteram as redes sociais.

Por estes tempos, vivemos uma fase de maior confinamento social, o que nos deixa mais expostos, quer aos media tradicionais, quer às redes sociais e, também por isso, parece-me que há uma sociedade inteira a precisar de introspecção e de reflexão (e, naturalmente, não falo apenas da sociedade portuguesa).

E precisam de introspecção e de reflexão, estas sociedades contemporâneas, porque o voyeurismo com que, compungidos e condoídos, nos vamos deliciando perante a desgraça alheia pode ser tudo menos um sinal de desenvolvimento humano.

O exemplo mais recente é o do homicídio ou, alegadamente, filicídio de uma criança de nove anos. Uma criança de nove anos, repito, que se chamava Valentina, mas que poderia ter o nome dos nossos filhos, dos nossos netos, dos nossos irmãos...

Uma criança que foi assassinada, ao que parece pelo seu próprio pai, mas que foi profanada, depois, por uma sociedade inteira. E foi profanada naquilo que todos temos de mais precioso, para além da vida: a nossa intimidade.

Uma profanação que foi feita pela exposição constante das suas fotografias – as fotografias de uma infância que podia ser a dos nossos filhos, dos nossos netos, dos nossos irmãos. E que foi feita na exposição, ad nauseam, do local onde o seu corpo foi encontrado. E que foi feita nas legendas chocantes que acompanhavam todas estas imagens.

Uma profanação que se sucedeu na multiplicidade de entrevistas a familiares e a populares espontâneos, prontos a relatar, perante as câmaras, aquilo que não poderiam, nem saberiam relatar. 

Uma profanação que continuou nas redes sociais, replicando-se em comentários e emojis, que ditavam as sentenças dos julgamentos populares, imediatamente aproveitados pelo discurso político fácil.

A pequena Valentina foi assassinada sim, não uma, mas muitas vezes.

Foi assassinada no momento em que lhe tiraram a vida e foi, depois, assassinada e profanada por cada um de nós, na nossa morbidez e no nosso desrespeito.

É que este é, afinal, o mesmo tipo de gosto mórbido que levava, no século XIX e primeira metade do século XX, às digressões dos circos de horrores, em que a doença, a deficiência e a miséria eram expostas, para júbilo e regozijo de uma população igualmente miserável em cultura e humanidade.

E esperava-se que, num século, tivéssemos sido capazes de evoluir, na nossa dimensão humana, mas o que encontramos é o mesmo tipo de violência e de atavismo.

Mudou, apenas, a escala e o modo de apresentação do horror, e de uma miséria itinerante passámos a uma miséria em rede. E das plateias pobres e andrajosas, instaladas em bancadas de madeira ou amontoadas no chão, passámos às confortáveis plateias de sofá. Na essência, ou seja, nos valores, tudo permanece igual. Tudo permanece igualmente violento e desumano.

Porque chamemos as coisas pelo nome: é de violência pura que se trata, e de desumanidade, e de morbidez.

Falhou o sistema – todo o sistema, da justiça, à educação e à segurança social – na protecção da vida desta criança? Talvez, é muito provável que sim!

Mas falhamos também nós, cada um de nós, quando, sentados em frente ao televisor ou teclando nos nossos telemóveis, nos convertemos em cúmplices, activos ou passivos, desta terrível pornografia da dor, que é a devassa da desgraça alheia.

Uma dor que, recordemo-lo, tem um nome e tem um rosto. Um nome e um rosto, que poderiam ser os dos nossos filhos, os dos nossos netos, os dos nossos irmãos...

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