Lar, doce lar

Testemunho de Manuel Vitorino, jornalista. “Ao fim de alguns dias confinado e atordoado por milhares de notícias, entrevistas, debates e mesas-redondas tomei uma decisão radical: apenas fazer ‘zapping’ às notícias e desligar a televisão dos infindáveis telejornais.”

As primeiras imagens de choque sobre o aparecimento do Monstro na Europa chegaram-me de Itália, através da Sky News, nas ruas e hospitais da belíssima cidade de Bérgamo. Vão ficar na memória. Foi há dois meses, na abertura do Jornal da Noite (SIC) e fiquei completamente paralisado. O apetite voou pela janela e os meus olhos ficaram em pranto. Como foi possível ter acontecido esta pandemia quando tudo, aparentemente, estava a correr bem?  

Em Portugal, já tinham tocado as campainhas de alarme e exigia-se ao SNS milagres que, uns meses antes, uns quantos atacavam (por ignorância, ou má fé) e a maioria manifestava apoio por ter um SNS dos melhores do Mundo.

Durante os primeiros dias, dei por mim sentado, religiosamente, à hora certa, para assistir às conferências de imprensa da DGS. Sucediam-se as perguntas atrás de perguntas, as respostas dadas por rostos cansados e, muitas vezes, difusas perante a complexidade dos problemas. Tudo era assustador, medonho, com mortes a subirem diariamente em Portugal e em flecha na vizinha Espanha, Itália, França, EUA, Brasil, Índia… As maiores dores de cabeça vinham das pessoas infectadas em lares, muitos deles sem condições de higiene e sanitárias, falta de pessoal especializado, ausência de cuidados de saúde. A novidade só foi surpresa para quem anda distraído, ou finge não saber. (Para memória futura: a maior parte dos lares em Portugal são armazéns de idosos e muitos deles funcionam de forma clandestina e à margem das leis. Toda a gente sabe, mas os sucessivos governos e a Segurança Social têm sido ineficazes neste combate. Depois, os interesses e o encobrimento de quem tem responsabilidades nesta matéria fazem o resto).

Ao fim de alguns dias confinado e atordoado por milhares de notícias, entrevistas, “reportagens em exclusivo”, debates e mesas-redondas com diversos especialistas em saúde pública, virologistas e cientistas, tomei uma decisão radical: apenas fazer “zapping” às notícias e desligar a televisão dos infindáveis telejornais com falsos directos que, em alguns casos, atingiam quase duas horas de emissão. Por uma questão de sanidade mental, também deixei de ver as palhaçadas do Trump e do psicopata Balsonaro.

Em troca, ganhei mais tempo para a leitura de jornais (não dispenso o Público e o Expresso desde que existem) e fui à estante buscar diversos livros esquecidos. A agenda está sempre cheia de acontecimentos, eventos, concertos, filmes, sessões de poesia online.

Os dias até parecem outros e agora, tenho a sensação de serem mais longos, muito mais ricos do ponto de vista espiritual e cultural. Só numa semana, entre o dia 25 de Abril e o dia 1 de Maio pude observar uma mão cheia de bons filmes, como “A Condessa de Hong-Kong” (1967) de Chaplin; “Forte Apache” (1949) de John Ford; “Adeus Lenine” (2003) de W. Beker; “A Condessa Descalça” (1954), de Joseph L. Mankiewicz; “ Os Filhos da Noite” (1949) de Nick Ray; mais um excelente documentário sobre Hitchcock (RTP2) e para terminar, revi “Janela Indiscreta” (1955) do mesmo realizador.

Como existem muitas iniciativas transmitidas pela Internet, tive tempo de sobra para escutar a importante entrevista do poeta e cardeal do Vaticano, José Tolentino Mendonça (através do site da Fundação Francisco Manuel da Mota); viajar até aos arredores de Paris, ao Palácio de Versailles e na companhia do Mezzo, assistir ao fabuloso bailado “Phaeton”, uma tragédia musical lírica interpretada pela Ópera Royal de Versailles, com música do compositor Jean-Baptiste Lully, um dos favoritos da corte de Luís XIV. A agenda ainda permitiu seguir algumas actividades programadas por Serralves, CdM, TNSJ e Galerias Mira.

E assim tenho vivido neste convento especial, clausura quase total, cumprindo escrupulosamente as regras da Direcção-Geral da Saúde e apenas colocando pé na rua para ir ao supermercado ou à farmácia. E com o foco virado para a Arte. Para hoje programei dois filmes imperdíveis: Táxi (2015) do iraniano Jafar Panahi e Roma (1972) de Fellini e, lá pela noitinha, tenciono retomar a leitura de “O Resto é Ruído”, de Alex Ross, uma obra monumental cujo resultado final “não é tanto uma história da música do séc. XX, mas sim, uma história do séc. XX através da sua música”.

Se o leitor teve a paciência de seguir estas linhas, já percebeu que, por este andar, com ou sem confinamento social, vou ficar muito mais tempo em casa. Por uma razão simples: estou a sentir-me muito bem. E como a vacina milagrosa vai demorar um ano (na melhor das hipóteses) o meu refúgio será sempre este convento onde tenho sempre muitas opções à escolha, Net 24 horas, televisão por cabo, estantes com livros, revistas, milhares de Cd´s, centenas de filmes.

A saúde não tem preço. E tudo o resto é ruído.

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