Algumas reflexões sobre a comunidade sem abrigo em Lisboa

A alternativa ao emprego não pode ser a rua e se é assim tão fácil (basta um par de semanas) cair nesta condição extrema é porque existem graves carências organizacionais que urge colmatar.

Nas últimas semanas tenho participado na operação do Centro de Emergência para acolhimento a cidadãos sem-abrigo. Admito que a duração da experiência não é a suficiente para me tornar um “perito” na questão, mas as conversas com quem, esses sim, já têm anos de experiência nesta problemática, com os próprios cidadãos sem-abrigo e com outros voluntários, permitiram consolidar algumas opiniões que gostaria de partilhar com o leitor:

1. Se todos os quatro centros de emergência de acolhimento de sem-abrigo estão cheios, isto significa que existem mais de 400 pessoas nos centros, havendo, em todos, outras pessoas que aguardam vaga ou que deambulam nas imediações porque não cumpriram uma das condições de permanência (consumos de álcool ou droga, violência, etc.). Em Junho de 2019, a Câmara Municipal de Lisboa tinha identificado 361 pessoas vivendo na rua (e 1967 vivendo em acolhimento temporário). Se hoje, em Lisboa, há mais de 400 pessoas nessa condição e algumas outras dezenas aguardando vaga ou dormindo ao relento nos arredores, quer dizer que este número subiu a perto de 500?

Algumas pessoas (conheço alguns casos) são novos desempregados sacrificados antecipados da recessão de 2020 e outras vieram dos concelhos limítrofes (ou, mesmo, de tão longe como Évora). Quanto esta crise terminar é provável que alguns regressem aos seus concelhos de origem, mas é também provável que a maioria fique na cidade que – bem – decidiu montar uma estrutura para os apoiar: com serviço de saúde (triagem diária por enfermeira), alimentação, pernoita (cama e cobertores), cedência de roupa usada e outras condições que não encontram na rua.

Este é mérito da câmara municipal que deve ser realçado mas é, também, um demérito das câmaras da região que não acompanharam Lisboa na rápida montagem de uma estrutura de apoio de emergência que funciona hoje de forma eficaz e competente. Estes números e a própria mobilidade natural desta população provam que é preciso parar de encarar este fenómeno dos sem-abrigo como uma realidade própria ou específica de uma dada cidade e que é preciso montar, ao nível da Área Metropolitana, uma estrutura partilhada de centros de acolhimento, flexíveis, eficientes e descentralizados de apoio a estes cidadãos.

2. Outro ensinamento que recolhi destes dias é a maior facilidade com que estes cidadãos se deslocam e procuram ficar nestes centros de emergência e evitam os centros de acolhimento que já existem na cidade e que, apesar da crónica carência de espaço e meios, funcionam de forma bem organizada e com altos padrões de competência. A razão maior para esta preferência advém da existência de regras menos rígidas nestes centros de emergência. Isto deve fazer-nos reflectir a todos: alguma da população sem-abrigo está nessa situação porque – por muitas razões – tem dificuldade em cumprir ou interiorizar o cumprimento de regras. Tornar as ditas demasiado densas ou rígidas torna o processo de recuperação mais lento e tortuoso e, a prazo, pode revelar-se contraproducente. Talvez seja necessário construir mais centros permanentes de acolhimento (actualmente só existe um em Alcântara) e flexibilizar as suas regras.

3. Uma percentagem muito significativa dos cidadãos sem-abrigo que estão nestes centros de emergência é estrangeira: moldavos, russos, bengalis, brasileiros, guineenses, angolanos, cabo-verdianos, nepaleses, etc. Muitos destes cidadãos tinham contratos precários (ou nem isso) no sector da restauração, agricultura, construção civil, pequeno comércio ou turismo. A paragem da economia durante o estado de emergência tirou-lhes o emprego e atirou-os para a rua. Isto serve de sinal da insuficiência da acção da nossa Inspecção do Trabalho (com uma carência, crónica e de anos, de inspectores), da falta de moral de alguns empresários (sobretudo os do sector do Turismo, que tanto facturaram durante o “boom” dos últimos anos), mas também das carências da rede social de apoio na cidade e na própria República: a alternativa ao emprego não pode ser a rua e se é assim tão fácil (basta um par de semanas) para se cair nesta condição extrema é porque existem graves carências organizacionais que urge colmatar.

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