Covid-19 – A ilusão da normalidade

As pessoas nunca tiveram sede de verdades diante das evidências que lhes desagradam, mas é preciso que as autoridades públicas saibam refrear estas ilusões. A bem da saúde pública.

No quadro da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da pandemia causada pela doença covid-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), reconhecendo a excepcionalidade e a emergência da situação desencadeada por este surto, como é sabido, em Portugal foi decretado o estado de emergência e foram adoptadas um conjunto de medidas de carácter extraordinário que determinaram o isolamento social da população.  

Mas a verdade é que, considerando ter a epidemia sob controlo, e uma vez que não se prevê uma vacina (embora algumas vacinas estejam já em fase 2) nos próximos meses, um pouco por toda a Europa, pressionados pela urgência em minimizar os impactos de medidas de confinamento na economia, alguns países avançam com medidas de desconfinamento. Por exemplo, na Alemanha a taxa de infecção – indicador que mede o número de pessoas contaminadas em média por cada doente – baixou para 0,7 e esta diminuição levou à consideração do alívio de algumas medidas de confinamento.

Não obstante diversas organizações e cientistas têm vindo a avisar que uma decisão precipitada nesta matéria possa provocar uma segunda vaga de contaminações. Por, exemplo, a OMS tem alertado para o facto de a Europa concentrar mais de metade dos óbitos e dos casos de contaminações do planeta pelo que, estando no centro da pandemia, “não deve baixar a guarda”. Também segundo o MIT, que elaborou um modelo capaz de prever a expansão da covid-19 e extrapolou dados publicamente disponíveis sobre a disseminação da doença em diversos países, os países que implementaram intervenções rápidas e rigorosas de saúde pública de isolamento foram bem-sucedidos em deter a propagação da infecção. E comparando o papel desempenhado pelas medidas de isolamento em cada um dos países no controlo da reprodução do vírus, concluiu que, mesmo que a quantidade de novos casos comece a estabilizar, relaxar as medidas de isolamento cedo demais será catastrófico. O MIT traça um paralelo com a situação ocorrida em Singapura, alertando para o facto de os esforços de distanciamento saírem prejudicados com um retorno inadequado à normalidade, causando um ressurgimento massivo de casos covid-19.

Ora também em Portugal – quando, em menos de dois meses, foram já identificadas mais de mil mortes por covid-19 – o receio sobre os efeitos do “regresso à normalidade” aumenta. É preciso que, nesta retoma de actividade, em nome da defesa da saúde pública, se assuma um papel pedagógico, ajudando organizações, empresas e pessoas a compreender os riscos para a saúde das pessoas. Desde logo, independentemente da idade, identificando a doença covid-19, por exemplo, como uma doença do foro respiratório ou hematológico, e os grupos da população sujeitos a maior risco (dado também relevante para a medicina do trabalho). Depois, e atendendo ao direito, constitucionalmente consagrado, à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde no trabalho, alertando para o respeito escrupuloso pelas distâncias de segurança e normas de higiene das instalações, sobretudo em ambientes fechados, onde o risco de contágio é muito superior.

Como têm prevenido diversos especialistas nesta área, sobre esta doença ainda se sabe muito pouco e, nessa medida, é preciso considerar que a coexistência com o coronavírus SARS-CoV-2 – sem uma vacina ou tratamento – nos obriga a repensar que deixou de ser possível a normalidade de outrora. Como se sabe, as pessoas nunca tiveram sede de verdades diante das evidências que lhes desagradam, mas é preciso que as autoridades públicas saibam refrear estas ilusões. A bem da saúde pública. 

Sugerir correcção