Covid-19: o desassossego de uma médica com três meses de experiência

Será que toquei em algum sítio sem desinfectar as mãos? Será que tenho o equipamento de protecção correctamente posto? Será que posso agir desta forma sem possibilitar a transmissão do vírus? Afloram-se as inseguranças e um certo peso instala-se no peito, num desassossego controlado.

Foto
LUSA/MÁRIO CRUZ

No passado dia 2 de Janeiro, entrei pela primeira vez no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde comecei a trabalhar enquanto médica formada, de diploma ainda fresco no canudo. Tive o cuidado de entrar com o pé direito porque gosto de me agarrar a umas quantas superstições saudáveis e porque não parava de ouvir a voz da minha tia na cabeça: “Não te esqueças de entrar no hospital com o pé direito!” Era com o pé direito que eu queria entrar nesta carreira pela qual lutei durante os últimos seis anos da minha vida. O entusiasmo era (e é) tanto.

Finalmente, sou médica. Contudo, cabem neste conceito muitos graus de experiência e conhecimento. Sou médica, mas uma médica muito pequenina. Passei os últimos meses a falhar, a não saber como se faziam as coisas e, sobretudo, a aprender. Aprendi muito, mas ainda não aprendi quase nada.

Em Março, o meu estágio de Pediatria foi interrompido. Recebi ordens para ficar em casa durante duas semanas, em regime de reserva de contingência, para depois ser alocada num dos serviços de Medicina do hospital, conforme as necessidades em tempo de pandemia. Nesta altura, dois sentimentos contraditórios me assaltaram: por um lado, a frustração de ter de ficar em casa, sem poder ajudar, durante 15 longos dias; por outro, a ansiedade antecipatória de vir a cair de pára-quedas na linha da frente de uma batalha contra um inimigo incógnito. Não me entendam mal, não havia coisa que eu quisesse mais do que ajudar neste momento crucial das nossas vidas, este era apenas o medo da inexperiência e do desconhecido, que certamente assolou muitos de nós.

Hoje já regressei ao trabalho. Felizmente, graças às medidas implementadas, o cenário está mais favorável do que a calamidade que a minha ansiedade previa.

Entre o trabalho estatístico e burocrático na enfermaria e a observação de casos suspeitos no serviço de urgência, o estado de alerta é constante. Será que toquei em algum sítio sem desinfectar as mãos? Será que tenho o equipamento de protecção correctamente posto? Será que posso agir desta forma sem possibilitar a transmissão do vírus? Afloram-se as inseguranças e um certo peso instala-se no peito, num desassossego controlado.

Mas se a covid-19 é uma constante na rotina do hospital, é também no hospital que ela fica. Em casa, adoptei a particular estratégia de me pôr a ler artigos de revistas que adquiri há meses, para deixar a minha mente fugir para tempos mais leves e livres. Leio, escrevo, cozinho, tiro cursos online ou simplesmente não faço nada e desocupo a cabeça. Tão importante como a protecção física, em meio hospitalar, é a manutenção do bem-estar mental, cá dentro. Longe da família e dos amigos, há dias mais fáceis do que outros. Há que o reconhecer e aceitar, nem todos serão bons dias. O importante, para mim, tem sido distanciar-me, dentro do possível, do absurdo da situação e focar-me no que me deixa tranquila e feliz.

Este é apenas um relato, um entre tantos outros, e não pretende ser mais do que isso. Uma perspectiva pessoal de alguém que está a dar os primeiros passos nesta profissão e que se depara, subitamente, com este desafio. De alguém que, apesar de não sentir que tem um papel extraordinário neste combate, tenta reunir os meios que tem à sua disposição para contribuir e fazer um bom trabalho, mantendo-se à tona das suas próprias vulnerabilidades.

Sugerir correcção