Os dias sobrepõem-se e a rotina desgasta-se

Existe uma linha que separa a zona limpa da zona suja da enfermaria, a zona dos quartos. A fim de a cruzar, equipo-me com bata, óculos, viseira, touca, luvas, avental e máscara. A sensação é a de claustrofobia, como se estivesse encarcerado num outro mundo, e os meus pensamentos ganham dimensão.

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LUSA/MARIO CRUZ

Os dias sobrepõem-se e a rotina desgasta-se em gestos arrítmicos e instintos, apenas quebrados pelo trabalho, bóia de salvação neste isolamento, que concede uma habitual calma e conforto à alma e espírito. Chego ao hospital e subo entusiasticamente as escadas até ao serviço. Troco a roupa da rua, limpa, por fatos verdes. Existe uma linha que separa a zona limpa da zona suja da enfermaria, a zona dos quartos. A fim de a cruzar, equipo-me com bata, óculos, viseira, touca, luvas, avental e máscara. A sensação é a de claustrofobia, como se estivesse encarcerado num outro mundo, e os meus pensamentos ganham dimensão.

Olho para o chão, vislumbro a linha e, como se de magia se tratasse, atravesso o portal invisível que me leva aos quartos. Os óculos embaciam perante a minha respiração ofegante. À minha frente quatro camas, quatro doentes, com os quais posso apenas dispensar o mínimo de tempo possível, não fosse o risco de contágio. Sinto o bater do coração nos meus ouvidos. Pergunto como tem passado, que queixas tem, se nota melhorias. Vejo sinais vitais e ausculto. Repito o procedimento para os quatro doentes, tentando dar-lhes uma sensação de segurança nesta insegurança que vivemos, eu e eles. Faço conversa de circunstância, tento conhecê-los e dar-me a conhecer, para que a distância dos fatos de protecção seja esbatida.

Saio do quarto e inicia-se todo um ritual meticulosa e compulsivamente montado, vigiado permanentemente por um, dois, três pares de olhos atentos a todos os meus movimentos. Retiro as batas de protecção e as luvas, sempre com movimentos rígidos e controlados. Desinfecto as mãos. Tiro os protectores de sapatos. Desinfecto as mãos. Retiro a touca. Desinfecto as mãos. Retiro os óculos e a viseira. Sou repreendido por ter tocado um centímetro ao lado do sítio recomendado. Volto a desinfectar as mãos, neste medo permanente de contágio. Introduzo lateralmente os dedos nos elásticos da máscara. Fecho os olhos e, com movimentos delicados, tacteando o couro cabeludo e afastando delicadamente o cabelo, vou progredindo na tentativa de afastar o mais lentamente a máscara da face.

Progressivamente, é como se um peso me tivesse sido tirado do corpo. A máscara sai e coloco-a no lixo. Sinto a cabeça latejar nos locais onde os elásticos pressionaram o couro cabeludo. Desinfecto as mãos. Os olhares vigilantes aprovam o procedimento e tenho autorização para voltar a cruzar universos. De volta ao fato verde alienígena, agora ensopado em suor, sou fonte de contágio. Dirijo-me à casa de banho e submeto-me a um banho desinfectante. Troco de roupa e volto à enfermaria limpa. Na sala dos médicos multiplicam-se conversas e discussões sobre os doentes. Nuns pondera-se a alta, noutros pondera-se o contacto com a Medicina Intensiva. Ajustam-se terapêuticas com o pouco conhecimento que actualmente dispomos e estabelecem-se planos de actuação.

O dia termina e os doentes que preocupam são passados às equipas de urgência. Troco a roupa suja da enfermaria pela roupa limpa da rua. À medida que me afasto desta dimensão paralela, volto a pensar nos doentes que vi, vulneráveis, com a certeza da incerteza. Revivo minuciosamente uma a uma as observações que fiz, os achados que encontrei, a gravidade de cada um deles. Confirmo que nada ficou por dizer, que tudo foi pensado e equacionado. Retorno a casa, ao meu isolamento, e reparo nas reflexões metálicas ondulantes que a luz solar toma na superfície do Tejo, que cenário distópico.

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