Entrar num quarto de pressão negativa e ouvir: “Olá, enfermeiro Nuno!”

Testemunho de Nuno Moreira, enfermeiro no Serviço de Doenças Infecciosas no Hospital Curry Cabral. “Com a máscara posta, em jeito de D’Artagnan, começo a ronda. Um dia nunca é igual a outro.”

Sou há dez anos enfermeiro no Serviço de Doenças Infeciosas no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Há mais de dez anos que o risco faz parte da minha vida e do meu dia-a-dia. Todos os dias acordo com a certeza deste contacto.

Estou há mais de um mês a viver uma situação de normalidade, ao contrário de todos que a consideram de exceção. Fui treinado e desenvolvido para isto. Isto é onde acredito acrescentar valor e fazer a diferença. Podia dizer que hoje os meus dias são substancialmente diferentes, mas, com toda a serenidade e confiança no profissional que sou, digo que não. O meu dia hoje, em tempos de pandemia, começa, como em muitos outros, com alguma ansiedade no peito. Incerteza sobre o que vou encontrar e o que me espera. Enganem-se aqueles que pensam que nós, profissionais de saúde, sentimos isto pela primeira vez agora. Não. O nosso empenho e entrega sempre foi este.

Desde que fomos “contaminados”, não só pelo vírus, mas também pelo estado de consciencialização e alerta, que a minha vida se ajustou. Não mudou: adaptou-se, ajustou-se. E muda a cada cinco minutos que passam. Reinventamo-nos e respondemos a cada situação com a qual nos deparamos.

Entro no hospital apenas com uma certeza: a de que, para além de tudo o que tenho comigo, tenho ainda que “carregar” os equipamentos de proteção individual. “Equipamentos” que me protegem do vírus e de tudo o que é transmissível, mas também do que não se transmite por gotículas: os meus sentimentos, receios, fragilidades e também ações.

Com a máscara posta, em jeito de D’Artagnan, começo a ronda do meu dia. Dia este que nunca é igual a outro, mantendo apenas constante a preocupação de saber como se encontram os doentes que estão ao nosso cuidado. São a nossa preocupação diária, são eles que nos motivam, “energizam” e nos dão vontade de continuar nesta luta que um dia vai acabar. Mudam-se os protocolos, ajustam-se estratégias, mas nada afeta a nossa entrega e vontade de querer mais e melhor para aqueles de que cuidamos no dia-a-dia.

Já meio dia passou no momento em que entro nos quartos de pressão negativa, sou atingido por ela quase como uma espécie de saudação: “Olá, enfermeiro Nuno!” Em cada um daqueles espaços reside momentaneamente uma pessoa com necessidades de cuidados especiais de enfermagem que começam assim, com uma simples saudação, e podem ir até ao procedimento mais invasivo e complexo.

É sob esta pressão que entramos em todos estes quartos que acolhem doentes de covid-19, mas de imediato ela verga-se ao sermos expostos aos que estão infectados, doentes e mais precisam, mas que nem assim nos deixam de tratar com carinho e cuidado, dando-nos força e alento. “Obrigado, ‘Nando’!”

Durante todo este processo somos apoiados por uma equipa de retaguarda, composta por administrativos, auxiliares de ação médica, técnicas de limpezas, médicos e todos aqueles que fazem funcionar esta grande máquina chamada “hospital”. Sem eles, certamente a minha prestação seria diferente. Não mais nem melhor – diferente.

O que é viral e evidente nesta situação, e que permanecerá, é o espírito de equipa, interajuda e solidariedade, que não só se sente na minha equipa, mas em todas as outras e que também se reflete em todos nós. O que também existe em nós é o medo, a incerteza e o receio, em relação ao doente, mas também em relação a cada um de nós, e que ficará.

E deito-me numa cama estranha, longe do meu conforto, longe da minha família, mas com a mesma firme certeza de que acordo e protejo todos os que mais amo, mas também todos os que não conheço. 

Perseverança será o que nos une.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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