A casa e o mundo

Construímos, agora, novas representações de “casa”, de “mundo”. O confinamento forçado de milhões de seres humanos muda a consciência do tempo e do espaço.

Construímos sentidos para as coisas – tal é a singularidade humana. Instituições, Margens, Regras, Infrações, Bondades, Maldades e tantas outras que não podem colocar-se em simples pratos de balança.

Cavalgámos com vertigem o século XX. Não só as guerras e as pazes, os genocídios e as doenças. Não só os blocos militares e ideológicos, o domínio da economia do petróleo, as vagas sucessivas das revoluções tecnológicas, a entrada no Antropoceno, essa idade da Terra em que as mudanças estruturais do planeta são causadas pelo Homem. Não só o aumento da esperança de vida e a quebra de natalidade, a redução da pobreza e o aumento das desigualdades, a concentração da riqueza em poucas mãos, não só as mortes por causa da fome e conflitos armados, a transferência das linguagens dos territórios analógicos para os digitais, a globalização do comércio e do capitalismo, as migrações forçadas e os refugiados, a poluição e a destruição da Natureza. Não só a mudança dos papéis dos homens e das mulheres, da relação com o corpo e com o lúdico, com os valores, com a religião, com a cidadania, com a cultura. Não só. Podemos encher este texto, os olhos e o espírito com as vagas sucessivas que inundaram a Terra de transformações aceleradas, por vezes brutais e que diferem de períodos anteriores da História, em que tantas e tão rápidas transformações não ocorreram, de forma cumulativa.

Construímos sentidos para as palavras.

Dizemos “casa”. Dizemos “mundo”. E tanto a casa como o mundo têm significados diferentes de tempo para tempo, de continente para continente. Durante períodos longos, a casa foi o lugar da intimidade. O mundo, do espaço público.

Depois veio o rádio, a televisão, computador, o computador portátil, a Internet, a World Wide Web, o telefone celular, o smartphone, as redes online como o Facebook, o Twitter, o Instagram, veio o WhatsApp, o WeChat, a Amazon e o AliBábá, o Spotify e a Netflix, a georeferenciação, a videovigilância, os programas de software que permitem identificar e mobilizar comportamentos individuais e de grupo.

O sentido de casa e de mundo transformaram-se. Também o sentido de intimidade e exposição. De público e de privado. Habituámo-nos a deixar que nos invadissem a privacidade e a mostrar a intimidade. A opinar sobre tudo e todos, como se a opinião de cada um tivesse, num espaço mediático aparentemente democrático, o mesmo valor.

Desvalorizou-se, nas democracias, o papel da autoridade política, moral, intelectual, filosófica. Aumentaram os extremismos, os radicais. Valorizou-se o papel da autoridade científica, militar, económica, comunicacional.

A noção de tempo e de espaço transformou-se. Como se vivêssemos numa permanente movida, condimentada com a saturação pela imagem e pelo excesso de informação, de emoções. E de um momento para o outro, ainda mais veloz do que a velocidade a que já nos habituáramos, tudo mudou. Muito de repente. Não estávamos preparados. E continuamos a não estar preparados.

Vive-se a vida no plano dos afazeres e, dualmente, no plano do medo. Todos temos alguma coisa (ou tudo) a perder. Uma ameaça invisível e poderosa corrompe os sentidos do tempo e do espaço, do eu e do outro, da proximidade e da distância. As tarefas estão entre o ato mecânico e a necessidade. Os valores do médio e longo prazo são incertezas.

Os modelos em que ancorámos convicções, comportamentos, rotinas, expectativas, emoções, ideias, projetos, estão profundamente abalados. Atividades estruturantes da economia, da cultura, da sociedade, estão postas em causa. O sentido da delimitação entre a atividade laboral, as aprendizagens e o lazer, debate-se, em muitos lares, com difíceis paradoxos. A organização do dia das famílias é um exercício difícil. Aqueles e aquelas que trabalham fora de casa, para garantir o funcionamento de sectores essenciais em tempo de pandemia, estão em risco e podem por em risco os mais próximos. Os mais velhos estão submetidos a uma pressão psicológica ainda maior que as restantes camadas etárias. Os mais desfavorecidos, como sempre acontece em períodos de crise, passam por dificuldades de acesso aos bens essenciais.

Construímos, agora, novas representações de “casa”, de “mundo”. O confinamento forçado de milhões de seres humanos muda a consciência do tempo e do espaço. A casa, é, como não era, o centro da geografia e das horas. Um espaço tornado reduto.

Estabeleceu-se um cordão sanitário a partir da soleira da porta. Sendo que todas as atividades pessoais, profissionais, formativas, lúdicas, as pontes de informação, acesso ao conhecimento e à comunicação, se fazem a partir desta centralidade, a casa tornou-se o mundo. Uma casa-mundo, um planeta-casa, com veredas estreitas e continentes à vista, para a maior parte das pessoas.

A claustrofobia não é possível (seria o fim), o inferno não podem ser os outros - pais, mães, filhos, avós – seria uma evidência excessiva. Como viver neste planeta -família?

Mas apesar de tudo com janelas tácteis, ecrãs feitos necessidade maior. Será que a saturação vai imperar entre as vozes da casa ou a sobrevivência estabelecer aberturas antes impensáveis? O tédio será mais forte que o stress? O sono mais repousante que as novelas?

Sabe-se que o confinamento é uma necessidade. E o ser humano é adaptativo. Mas o quanto nos conseguimos adaptar e o quanto nos devemos adaptar? Vivemos uma crise de dimensões dificilmente compreensíveis.

Portugal - que não resolveu a equação modelo produtivo/qualidade de vida - com pouco aforro, forte dependência externa, endividado, com rendimentos baixos, como vai levantar-se, do desemprego, da falência das empresas, da depauperação do Estado? De um ano letivo partido ao meio, de preparações de admissão à universidade em modo de expectativa, de milhões de trabalhadores em teletrabalho, lay-off ou no desemprego? Como se vão levantar sectores essenciais da nossa indústria, comércio e serviços? Qual o futuro da agricultura e das pescas?

De um momento para o outro, um país que se libertou do Estado Novo, melhorou em muitos parâmetros nos últimos quarenta anos, e que estava a traçar a senda do otimismo, passou a ser um país sob ameaça, no agora e no depois.

A casa-mundo, o castelo familiar, irá, mais tarde ou mais cedo, ser transformado em lugar de outras rotinas, que não as da emergência que hoje se chama quotidiano. Haverá, de novo, uma partição entre o espaço casa, o espaço trabalho, o espaço escola. Ou não? Aceitaremos que as atuais limitações de direitos e liberdades, o controlo da nossa mobilidade continuem, em nome do interesse comum?

Que marcas, que traços de longa duração se vão estabelecer nas rotinas e nos modelos?

Podemos aprender e melhorar a partir daqui. Tendo por centro o valor das pessoas, podemos ser inovadores no funcionamento do sistema de saúde e das escolas. Dos lugares de trabalho e das formas de trabalho. Nos comportamentos familiares e na relação com os amigos. Nas dinâmicas de comunicação e na utilização das tecnologias. Na participação política, nos modelos económicos, na criação e fruição cultural. Nas medidas ambientais e na gestão de recursos. Na mobilidade e no apoio aos mais velhos. Nas atividades educativas e no trabalho científico. Nas empresas e na sociedade civil.

A casa e o mundo mudaram. E nas grandes mudanças, podemos sempre construir novas casas e novos mundos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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