Há um modelo português de resposta à pandemia de covid-19?

Portugal está completamente ausente das notícias internacionais, e esta ausência é estranha porque nos parece que – com todos os seus defeitos – há virtudes no modelo português. Mas será que existe mesmo um modelo português de reposta à pandemia de covid-19?

O mundo debate intensamente a evolução diária das estatísticas perturbantes de morbidade e mortalidade da pandemia de covid-19. Não é apenas uma questão de especialistas de epidemiologia; todas as pessoas têm uma opinião. 

No espaço de poucas semanas, termos complexos como “imunidade de grupo” (herd immunity) ou “achatamento da curva” (flattening the curve) começaram a circular nas redes sociais e nas vozes/opiniões de youtubers profissionais, e todos tentam perceber qual é a melhor estratégia para enfrentar a pandemia por forma a reduzir a velocidade do contágio e reduzir o número de casos confirmados/mortos e o impacto no sistema de saúde. Existem muitas teorias e muitos modelos. Alguns falam do modelo chinês, mas também há o modelo japonês e o modelo coreano e, mais recentemente, o modelo alemão e austríaco. Uma coisa parece certa: com algumas exceções pontuais, Portugal está completamente ausente das notícias internacionais, e esta ausência é estranha porque nos parece que – com todos os seus defeitos – há virtudes no modelo português. Mas será que existe mesmo um modelo português de reposta à pandemia de covid-19?

Existe sem dúvida um grande contraste entre os modelos de resposta vindos do leste asiático e aqueles que estão a emergir na Europa. No leste asiático, o Estado (democrático ou não) é definido como a única entidade com autoridade moral para desenvolver um programa de resposta, e é o Estado também que delega poderes e responsabilidades de supervisão e de governação da vida quotidiana em unidades sociais mais pequenas como companhias, instituições, famílias, ou até mesmo associações comunitárias. Estas unidades sociais mais pequenas têm a responsabilidade de supervisionar o comportamento dos seus membros. É por isso que temos, por exemplo, diretores de departamentos universitários em cidades tão diferentes como Hong Kong e Pequim a escrever relatórios de saúde diários dos membros do corpo docente. Imagine-se o diretor de um departamento universitário em Portugal a reunir informação diária sobre a saúde dos seus colegas, incluindo temperatura corporal e evolução de sintomas! Difícil de imaginar, não é? Existem variações significativas nestas estruturas de micro-governação, mas todas elas envolvem noções de dever colectivo e responsabilidade social que são comuns em todo o leste da ásia. 

A China continental não se fica por esta abordagem de micro-governação; também faz uso de estratégias mais draconianas de macro-governação. O Governo chinês tem o poder e a capacidade de colocar cidades com mais de dez milhões de habitantes em total isolamento numa questão de dias, e não hesita em fazer uso de novas tecnologias digitais para impor esquemas de classificação e monitorização epidémica dos movimentos de cidadãos. Países no leste asiático como o Japão não partilham este modelo mais autoritário de controlo da sociedade. O Japão prefere soluções menos autoritárias, mas tem uma população muito mais pequena, muito mais afluente e muito mais homogénea, e não se sabe o que aconteceria no Japão se a pandemia tivesse lá começado.

Os países europeus – e Portugal não é uma exceção – não se revêm no modelo autoritário chinês. Para os europeus, o Estado não é a única entidade que tem autoridade moral para tomar a iniciativa e preparar um programa de resposta. A sociedade civil também pode ter um papel proactivo neste processo, mas a verdade é que nesta pandemia o papel das sociedades civis nacionais foi menos visível do que o papel de instituições não governamentais como a Organização Mundial da Saúde (OMS). E a OMS desempenhou um papel importante no aconselhamento dos órgãos de saúde pública dos vários Estados sem determinar as decisões destes organismos estatais. Na europa, as organizações estatais desempenharam um papel fundamental na resposta à pandemia, mas os vários Estados europeus – ao contrário dos vários Estados do leste asiático – foram confrontados com um importante dilema. Não podendo impor deveres e responsabilidades às várias unidades/estruturas sociais da sociedade civil sob pena de ser acusado de autoritarismo, o Estado teve que desenvolver medidas de macro-intervenção na sociedade que pudessem ser justificadas à luz de princípios básicos de constitucionalidade e de respeito de valores democráticos liberais. Grande parte dos países da Europa apostaram em medidas de macro-intervenção radical na sociedade e os mais bem sucedidos até agora foram aqueles que apostaram em uma de duas estratégias: de um lado, há países como a Alemanha e a Áustria que apostaram desde muito cedo no aumento do número diário de testes e na identificação e isolamento de cadeias de transmissão ligadas a casos confirmados; do outro lado, há países que apostaram desde muito cedo (relativamente à sua curva de casos confirmados) na implementação de um estado de emergência que permitisse a utilização de medidas radicais de isolamento social e quarentena quase total. Nós julgamos que Portugal faz parte deste segundo grupo e que está em vias de se juntar agora também ao primeiro grupo, pois em Portugal – como na Alemanha e na Áustria – as últimas notícias apontam para um aumento significativo da capacidade diária nacional de fazer testes covid-19. 

Porque ninguém fala do modelo português e quais são as suas principais características? De forma sucinta, pode dizer-se que Portugal apostou no isolamento social e na quarentena sem uso de máscaras (reservadas aos profissionais de saúde), e no encerramento das escolas e de todos os espaços públicos muito cedo na curvatura da taxa de morbidade covid-19. Pode igualmente admitir-se que o país aprendeu com a experiência dramática de países como a Itália, e neste sentido beneficiou da unidade do sistema político nacional, do Presidente ao Governo e à oposição. Um último elemento determinante terá sido a perceção da ameaça sobre o próprio SNS. E se há serviços públicos em que os portugueses confiam, o SNS é o melhor deles: serve a todos e de forma tendencialmente igual. Mas será que o modelo português também se distingue de outros modelos pelo seu espírito de inclusão? Ao assegurar o acesso dos imigrantes ao SNS, o modelo português está a tentar desafiar a tendência histórica das pandemias revelarem formações de desigualdade e momentos de desumanidade, mas por quanto tempo?

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