Porque a escola encerrou, mas nós não

A verdade é que nem todos os meus alunos têm telemóvel, só um ou outro tem computador e há pelo menos um sem internet em casa. Como é que eu não sabia disto? Pois, nunca perguntei.

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Sergio Azenha

Naquele dia 12 de Março, quando foi decretado o encerramento das escolas como medida de controlo da propagação da covid-19, a minha reacção foi de alívio em relação à crescente preocupação que havia tomado conta das nossas conversas nos dias anteriores. Eu que, na sala de aula, pratico uma aprendizagem de proximidade, da saudação inicial ao trabalho colaborativo “em ilha”, já estava a redefinir o mapa de distribuição dos alunos pelo imenso planisfério de mesas e cadeiras enfileiradas. Ao mesmo tempo, cumpria e fazia cumprir o plano de contingência da escola, procurando desinfectar as mãos e a alma da angústia de isto não ser suficiente. Por isso, foi com alívio que recebi esse decreto, mesmo estando ainda sob o efeito vertiginoso da flechada mediática do fecho de fronteiras, no impedimento imperioso do direito humano de mobilidade. Era preciso, justificável e temporário, mas não deixava de ser simbólico.

As medidas, os decretos, o acto de fala que se produz num conjunto de palavras começam por ser símbolos, até invadirem e se instalarem objectivamente nas nossas rotinas tomadas por garantidas. Foi esse raio de realidade que me atingiu no dia 16, quando acordei às 6horas, sem despertador e, sim, a despertar para a estranheza oca de saber embargada a habitual trajectória laboral. E agora? Como sei se os meus alunos estão bem? Como faço a escola ir ao seu encontro?

8horas, está a começar a primeira aula e eu penso em formas de comunicar com os meus 40 alunos desta manhã, 40 dos cerca de 1,5 milhões sem ir à escola em Portugal, a partir deste dia e até nova análise da situação pandémica. Não tinha havido tempo para orientações nem interiorizações e os directores de turma, coordenadores, direcção da escola, enviaram o que souberam, e estariam tão assoberbados com o tsunami que lhes tirou a terra firme de debaixo dos pés, pessoal e profissionalmente, que era talvez tempo de agir autonomamente.

A escola precisava de ficar à tona. A educação tinha de permanecer viva, mesmo a respirar debaixo de água. E cada um de nós teria de ter um papel activo. Havia emails, contactos telefónicos de encarregados de educação: estavam reunidas as condições para pôr em marcha o plano de comunicação com os alunos. Perante uma circunstância de tal excepcionalidade, admito ter quebrado protocolos hierárquicos, admito ter secundarizado a repressora protecção de dados, admito não ter ficado à espera mais do que um par de horas até seguir um instinto mais forte: o de estabelecer ligação. Parece fácil, a revolução digital assim o permite. Lamentavelmente não foi e ainda não é, e não o será tão cedo. Lê-se nos media que a escola nunca mais será a mesma depois deste abalo. Veremos até que ponto mexerá com as estruturas, mentais e físicas.

A verdade é que nem todos os meus alunos têm telemóvel, só um ou outro tem computador e há pelo menos um sem internet em casa. Como é que eu não sabia disto? Pois, nunca perguntei. A falta de recursos operacionais fez-me apostar forte nas aulas presenciais, na velhinha fotocópia e na interacção verbal, confiei que a aulinha tradicional nos salvaria sempre naquele contexto.

Tenho sorte em ter encarregados de educação, todos eles imigrantes, que mantêm uma confiança cega no trabalho dos professores. A mãe da Vanessa, por exemplo, lamentou a filha ter deixado cair o telemóvel, não havendo condições para ter outro, mas prontificou-se a emprestar o dela para a filha manter o contacto com a disciplina. Criar um email, por exemplo, é uma odisseia no espaço porque ninguém se lembra já como fez e a última vez que o usou. E, bom, a palavra-passe perdeu-se noutra galáxia. Não há que fraquejar, há sempre um irmão ou uma prima que empresta o seu para recepção. E aquela que não tem internet, calha ser vizinha de outra, moram no mesmo prédio, falam ao telefone e vão trocar correspondência escolar através da caixa do correio.

E não, os meus alunos não pertencem, em rigor, à geração dos nativos digitais. A maioria contactou com tecnologias numa fase já tardia da escolarização, vindos de contextos onde, despojadas dessas ferramentas de comunicação e de ensino, as aulas convencionais eram o garante da sua educação. Por cá, continuam os constrangimentos socioeconómicos, já o ritmo é alucinante. É na tentativa de acompanhar este passo que eles me surpreendem.

Acresce a todas as dificuldades iniciais a barreira comunicacional, o desvio linguístico. Falamos português, português com crioulo, inglês, inglês com nepalês e, ruído à parte, injectamos doses extra de tolerância à repetição e a informação essencial chega ao destino.

São 12horas e já estão criados três grupos no WhatsApp e enviados convites para Google Classrooms para cada nível de Português Língua Não Materna. Não fui mais papista do que o papa: agora que os tinha conseguido envolver, agrupar, mais valia dedicar algum tempo a iniciá-los nesta experiência assíncrona. Não houve uma torrente de tarefas e fichas. Houve as actividades previstas presencialmente, só que à distância. Começam a chegar as leituras em áudio, os vídeos com as apresentações orais, os comentários — a adesão comove-me e faz-me tirar algum partido destes dias únicos. Por momentos, voltei à escola. Ainda que nada, absolutamente nada, possa substituir a experiência sensorial de uma sala de aulas física.

Tranquilizei, entretanto, a inquietação deste impetuoso empreendimento ao saber que outros colegas estavam já na mesma senda, e que as orientações depois emanadas pela Direcção-Geral de Educação iam ao encontro destas soluções imediatas, exequíveis e. criativas. Tudo no sentido de procurar não deixar ninguém de fora, de salvaguardar o direito inalienável à educação.

Esta não é a apologia do meu trabalho ou das minhas competências. Ao contrário, a autocrítica não me deixa relaxar no sofá à espera de instruções. Este pretende ser um testemunho de “desenrascanço” à professor português e um exercício de mea culpa por desconhecer importantes informações sobre as condições de estudo dos alunos quando o método tradicional falha, por reconhecer que é preciso instalar-se uma crise, criar-se uma urgência, para se ter a formação e as ferramentas que realmente importam.

Porque as portas da escola fecham, mas as janelas para o conhecimento não.

Porque não podemos deixar esmorecer os valores da empatia, da solidariedade, do diálogo, por vezes tão arduamente fomentados nos nossos alunos, quando nem os encontram no lar a que estão agora confinados.

Porque a nossa missão é educar, formar, preparar para um futuro, incerto e imprevisível, mas possível.

Porque, apropriando-me de Sophia, ainda que outros possam ir “à sombra dos abrigos”, que a nós, professores, nunca nos falte a guelra para ousar fazer novo e diferente.

Nisso, os nossos alunos dão a lição.

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