Não, esta não é a melhor altura para ir viver para uma aldeia

O ainda residual número de infectados no Alentejo é um incentivo à deslocação de quem reside em Lisboa. E o êxodo é crescente. Multiplicam-se os apelos de autarcas de territórios de baixa densidade para que as pessoas que ali se fixam cumpram quarentena.

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Coja, concelho de Arganil Sérgio Azenha

De repente e sem que alguém colocasse nos seus objectivos, mesmo a longo prazo, uma ida ou regresso ao Alentejo, a região está a assistir à reocupação de casas nas aldeias do interior ou à compra ou aluguer de montes isolados por pessoas vindas do exterior para “fugir” à pandemia de covid-19. O fenómeno multiplica-se pelo país, assistindo-se a uma inusitada migração para o interior na pior altura possível, já que colocam ainda mais em risco aqueles que lá resistem, na sua maioria idosos e, portanto, mais ameaçados pelo vírus.

Vítor Manuel Marques, de 66 anos de idade, residente em Olivais Sul, confessou ao PÚBLICO que foi residir para Vales Mortos, aldeia do concelho de Serpa a poucos quilómetros da fronteira espanhola, por “razões de segurança”. Ao longo das duas últimas semanas, o receio de ver a sua saúde afectada pelo coronavírus “veio em crescendo”, à medida que “via as ruas de Lisboa vazias e pessoas com máscara.”

O seu quotidiano era preenchido pelo convívio nos locais onde se reúnem os reformados. “Mas deixei de os ver no jardim”, conta. Recolheu a casa, tal como ditavam as orientações que ouvia na televisão, mas o receio de que o vírus o afectasse impeliu-o a fazer as malas, rumando à casa no Alentejo de que é proprietário com o irmão, na pequena comunidade onde vivem cerca de 170 pessoas, na sua esmagadora com idades superiores a 70 anos.

Continua a passar os dias sozinho, mas, pelo menos, sente-se liberto do receio de poder vir a ser infectado. “Considero que fiz o que julguei estar correcto”, argumenta, partindo do princípio de que, por estar assintomático, não se encontra doente.

É esta auto-avaliação que preocupa os que vivem na região e vêem chegar cada vez mais, na sua maioria para viver em casa de familiares. Até ao aparecimento do coronavírus, só vinham à terra nas épocas natalícia e Páscoa ou férias de Verão, mas, desta vez, o propósito é permanecer para fugir a eventual contágio.

O mesmo acontece noutros pontos do país mais conhecidos pela sua baixa densidade populacional. Um exemplo pode ser encontrado na freguesia de Coja, concelho de Arganil, relata um comerciante local que pediu para não ser identificado.

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“Tem-se notado um grande aumento de pessoas desde há uma semana. Mais de Lisboa, mas também estrangeiros que estavam nos seus países de origem e que têm aqui casa, mas que costumavam vir mais para o Verão”, descreve. Dá o exemplo da aldeia de Pai das Donas, que “costuma ter seis habitantes e passou a ter 20” por estes dias. “Também tenho amigos que vivem em Espanha e que voltaram”, acrescenta. E prossegue: “Nós compreendemos a situação, eles viviam em apartamentos e aqui sempre têm o quintal, mas não deixa de ser uma preocupação...” Na semana passada, este morador de Coja mantinha o estabelecimento aberto e registou “uma afluência terrível de pessoas” que procuravam equipar-se com materiais de bricolage para ocupar os seus dias de confinamento.

Ao PÚBLICO, o presidente da Câmara Municipal de Arganil, Luís Paulo Costa, confirma que se registou “um aumento significativo de pessoas no território”. Explica que isso deixa os autarcas preocupados, tendo em conta relatos de Espanha e França, onde a movimentação das cidades para territórios menos povoados terá ajudado a propagar o vírus.

“Temos vindo a sensibilizar os que já vieram, a maioria cidadãos de Arganil, para manterem o isolamento social”, afirma. Não há muito mais que a autarquia possa fazer, refere, mas entende que a movimentação de pessoas de umas regiões para as outras “devia ter sido condicionada mais cedo, até meados da semana passada”. Nesta segunda-feira, confirmou-se o primeiro caso de infecção em Arganil.

Têm-se multiplicado os apelos dos presidentes de câmara de territórios de baixa densidade em todo o país, para que quem tem casa nessas povoações não regresse à terra, ou mantenha quarentena, caso já o tenha feito.

Ainda na semana passada, em Bragança, a autoridade regional de saúde determinou que todos os cidadãos que regressassem do estrangeiro deveriam permanecer em isolamento profiláctico de 14 dias, a contar do dia de chegada. Autarcas do Sabugal e Pampilhosa da Serra também apelaram à quarentena de quem chega. “Nas aldeias, a população é idosa, já somos tão poucos que, se não houver cuidado por parte dos que estão a regressar, isto é para dizimar tudo”, alertou o presidente da Comissão Distrital de Protecção Civil de Bragança, Francisco Guimarães, citado pela agência Lusa.

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Mas também há casos em que essa vaga não se verifica. Indo mais para o interior da zona Centro, na Erada, uma freguesia da Covilhã, duas habitantes contam ao PÚBLICO que esse movimento não se fez sentir. “Notou-se que os filhos da terra não estão a vir à Erada”, refere uma das moradoras, mencionando vários exemplos de pessoas que, por precaução, decidiram manter-se nas suas áreas de residência para não pôr em risco os idosos desta aldeia.

Por ordens familiares

Já Alberto e Maria Cardoso, de 74 e 71 anos, respectivamente, trocaram a cidade de Aveiro pela aldeia de Guardão, no Caramulo, há 15 dias. Já o faziam com regularidade desde que começaram a recuperar a casa dos pais de Alberto, aproveitando tudo aquilo que o apartamento na cidade não lhes oferece (um terreno para cultivar e um jardim para manter) para ocupar os tempos livres da reforma. Desta vez, foram por ordem dos filhos e dos netos.

“Não queriam que estivéssemos com os netos e que corrêssemos riscos e mandaram-nos para aqui”, conta, bem-disposta, Maria Cardoso. Ela e o marido têm passado os dias de volta da horta, do jardim, das reformas da casa e a colocar a leitura em dia. “Estou a reler um livro que já tinha lido há muitos anos, A Túnica”, conta.

Da janela ou da porta, vão cumprimentando os outros habitantes da aldeia. Sempre à distância. “As pessoas estão conscientes, não se aproximam. E ainda ontem passou uma carrinha a avisar para as pessoas se manterem em casa”, relata esta professora reformada. Sem cafés ou lojas na aldeia, os abastecimentos têm que ser feitos na vila do Caramulo ou em Campo de Besteiros. Alberto e Maria ainda não precisaram de sair e a Internet vai ajudando a ultrapassar as saudades dos filhos e dos netos.

A lei que especifica as restrições à circulação no âmbito do estado de emergência não faz menção directa ao caso das segundas habitações. No entanto, ao abrir excepções apenas para casos de necessidade ou motivos profissionais, as pessoas deverão permanecer em casa e evitar circular na via pública. Desde a meia-noite de domingo que as deslocações que não estejam expressas na lei configuram crime de desobediência.

Mas, no Alentejo, já começaram a surgir, sobretudo à noite, em alguns montes que até agora estavam desabitados, luzes que indiciam a presença de pessoas, pormenor, que nalguns casos, acaba por ser confirmado durante o dia, como pode comprovar Amílcar Palma, de 53 anos, pastor.

“Já dei conta de três casais. Um deles, veio de França e outro de Lisboa”, assinalou Amílcar Palma, que deambula com o seu rebanho de cabras ou na apanha de cogumelos numa zona onde estão assinalados vários montes desabitados. “E amigos contam-me que eles [novos moradores na zona] já apareceram em Vale do Poço”, uma povoação erguida mesmo na linha divisória dos concelhos de Serpa e Mértola.

“As pessoas deviam ficar no sítio delas”, observa o pastor, frisando que a sua chegada, “caso estejam com o vírus”, coloca todos em perigo.

Há duas semanas, os seus receios acentuavam-se por causa da livre circulação entre países que se traduzia no receio do contágio que já se antevia se não houvesse controlo fronteiriço. Com o fecho das fronteiras, “que foi a melhor coisa que podia ser feita, estamos todos mais descansados”, sublinha.

O seu dia-a-dia também sofreu alterações. “Ando como os bichos (cabras) pelo campo e depois vou para casa e fico por lá”. Os amigos também não vêm à rua nem à tasca beber “um copo ou uma Mini”, pois esta fechou. “Agora não há ninguém para conversar e muito poucos aparecem no meio do povo”. Pelo que lhe tem sido dado observar, as pessoas estão certas dos perigos que correm”, mas, acredita, “pode ser que a necessidade de estar em casa dure menos tempo do que o que as pessoas pensam.”  

Um peso na fronteira

Este movimento sucede-se a outro que muito receio levantou nos primeiros dias desta crise. Nos municípios do Norte alentejano, Portalegre, Marvão e Arronches, os autarcas foram confrontados, semanas antes do encerramento das fronteiras, com a “invasão” de cidadãos espanhóis, um fenómeno que deixou as populações assustadas, por recearem o contágio. “Não imagina o que se passou em Arronches”, revelou ao PÚBLICO Fermelinda Carvalho, presidente da câmara local. Vindos da região de Madrid, “as pessoas fugiam para as terras de fronteira”, onde o contágio por covid-19 era residual ou inexistente. Como as povoações não estavam preparadas para uma tão inesperada afluência, os alimentos começaram a escassear e a alternativa estava em território português. “Passaram a vir almoçar a Arronches, a comprar alimentos e a frequentar os nossos cafés”, referiu a autarca, descrevendo as situações de medo da população, que receava o contágio do coronavírus.

Foi neste contexto que chegou ao conhecimento das pessoas que, na vizinha aldeia espanhola de Codosera, fora detectado o caso de um indivíduo vindo de Madrid que estava “infectado”, recorda Fermelinda Carvalho. A autarca lembra que a população do seu concelho “é muito idosa” e que tem cinco instituições para acolhimento. “Se o vírus entra ou já entrou numa delas, teremos uma desgraça”.

Mais a norte, em Marvão, o vice-presidente da câmara confirmou ao PÚBLICO um comportamento semelhante de cidadãos do país vizinho. “Verificámos que pessoas chegadas recentemente à povoação vizinha de Valência de Alcântara vinham abastecer-se no comércio local e tememos ficar sem bens essenciais para a população do nosso concelho”.

Destacou as relações de vizinhança que Marvão mantém com Valência de Alcântara, sobretudo na realização de actividades culturais, mas o fenómeno de “açambarcamento” preocupava igualmente o alcaide do outro lado da fronteira.

A situação piorava de dia para dia e os autarcas destes concelhos decidiram encerrar as fronteiras secundárias dos respectivos concelhos, “à revelia do Governo, que nunca nos enviou um fax, um e-mail ou fez um simples telefonema, a ajudar-nos a superar o problema” que estava a transtornar o quotidiano das populações e até a sua própria subsistência, critica Fermelinda Carvalho. A partir de então, as comunidades fronteiriças sossegaram, mas subsiste o receio do contágio que poderá ter sido provocado pela presença de forasteiros vindos de Espanha.

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