O excesso de liberalismo mata o liberalismo

O homem ocidental, considera Lagrange, precisa de recuperar um certo sentido de pertença a uma comunidade.

Hughes Lagrange, um prestigiado e polémico sociólogo francês, acaba de publicar um novo livro intitulado Les Maladies du Bonheur. Lagrange aborda nesta obra um tema que tem vindo a adquirir progressiva importância nas sociedades ocidentais: o aumento da ansiedade e das depressões individuais. A sua reflexão conduziu à enunciação de uma tese tão interessante quanto inquietante. Na sua perspectiva, na base deste excesso de ansiedade poderá estar uma desmesurada ambição de emancipação individual face aos mecanismos de integração comunitária e a todas as formas de autoridade. Esta ideia questiona directamente uma das heranças mais significativas da Modernidade ocidental – a valorização da autonomia e da independência do indivíduo nas sociedades democrático-liberais. É por isso mesmo uma tese destinada a gerar controvérsia.

O tema não é propriamente novo e já suscitou no passado respostas que apontavam num sentido não muito distinto daquele que Lagrange agora indica. Max Weber percebeu muito cedo que as sociedades modernas eram sociedades desencantadas; a faceta antropológica do pensamento de Marx realça os perigos inerentes à atomização individual própria do mundo capitalista; o conceito de anomia em Durkheim refere-se a um enfraquecimento do poder normativo no seio de sociedades industriais e fortemente urbanizadas; o Romantismo alemão, com o seu apelo à noção de volksgeist (o espírito do povo), opõe a ideia de comunidade histórica e orgânica à de uma sociedade constituída por agregação de vontades individuais.

Na primeira metade do século XX, partindo de pressupostos antagónicos no plano teórico, o comunismo soviético e o fascismo emergiram como respostas radicais a uma crise da civilização demo-liberal. Esta recuperou todo o seu prestígio no pós-guerra e atingiu o seu esplendor nos chamados “trinta gloriosos anos”, período marcado por um extraordinário crescimento económico e pela criação e desenvolvimento do Estado-Providência na generalidade do mundo ocidental. Contudo, mesmo nessa fase de apogeu não deixou de surgir uma linha de pensamento crítico consubstanciada na contestação da sociedade de consumo percebida como geradora de alienação.

A desagregação quase instantânea da União Soviética e do mundo comunista criou a miragem de uma vitória definitiva do modelo democrático-liberal que parecia destinado a uma rápida universalização. Assistiu-se, de facto, a uma hegemonia das correntes de pensamento liberais, tanto nos planos político e cultural como nos domínios económico e social. Este triunfo sem precedentes de uma linha de pensamento alicerçada na exaltação do primado do indivíduo não poderia deixar de ter profundas consequências na vida das sociedades.

Hughes Lagrange, reconhecendo o quanto o capitalismo moderno contribuiu para a melhoria das condições de vida das pessoas e quanto o modelo político democrático-liberal concorreu e concorre para a dignificação dos seres humanos, não deixa de colocar uma questão sensível. As democracias ocidentais, dominadas por aquilo que ele designa como uma “vertigem da liberdade individual”, foram progressivamente desvalorizando um lado institucional prescritivo. Na ausência dessa componente que era, em grande parte, assegurada por autoridades tradicionais, o indivíduo viu-se confrontado directamente com múltiplas pressões e com vários desafios indutores de um estado de ansiedade permanente. Esta ansiedade acaba por adquirir características patológicas. Daí o recurso ao consumo em elevada escala de substâncias psicotrópicas e a adopção de comportamentos reveladores de um profundo mal-estar mental.

Perante tal constatação, Lagrange apresenta como a melhor resposta possível uma ruptura com este modelo assente no culto do sucesso individual a todo o custo, na apologia de uma meritocracia cínica que atenta contra uma moral democrática e numa obsessão produtivista que põe em causa os equilíbrios ecológicos. O homem ocidental, considera Lagrange, precisa de recuperar um certo sentido de pertença a uma comunidade, de modo a desenvolver uma dimensão empática imprescindível para a sua saúde psíquica.

Este livro surge numa altura em que vários autores procuram recuperar o velho conceito orwelliano de common decency. George Orwell é conhecido pelas obras literárias em que denuncia genialmente o fenómeno totalitário contemporâneo, mas é também o autor de uma série de outros livros por onde perpassa esta ideia de decência comum. Ele passou muito tempo junto da classe operária do norte de Inglaterra e retirou desse convívio a conclusão de que as classes populares britânicas tinham um sentido inato de moralidade que as levava a praticar a entreajuda e a favorecer a fraternidade. Por oposição às elites políticas, económicas e intelectuais que no seu fascínio pelo poder facilmente adoptavam atitudes e comportamentos indecentes, as classes populares praticavam essa common decency que ele tanto admirava. O socialismo que Orwell preconizava era de natureza eminentemente moral e apelava à ambição não utópica de um mundo mais decente. Esta antinomia entre a decência das classes populares e a indecência das elites encerra, decerto, um maniqueísmo excessivo mas foi apresentada de tal forma que tem escapado à fácil acusação de ser populista. No fundo, este conceito orwelliano corresponde ao apelo de Lagrange à instauração de uma dimensão fraternal e cooperativa nas sociedades democrático-liberais.

Nos próximos anos iremos assistir provavelmente ao surgimento de múltiplos ataques ao pensamento liberal; à direita observaremos um recrudescimento da contestação ao liberalismo político e cultural; à esquerda constataremos o aumento da crítica ao liberalismo económico e social. Para quem considera, como é o meu caso, que a presença de uma componente liberal é imprescindível para o bom funcionamento do sistema democrático, é importante levar em consideração a principal ilação que se pode retirar desta obra de Lagrange: o excesso de liberalismo mata o liberalismo.    

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