Repensar a Barbie: “Até os avatares das mulheres, as bonecas, são questionados por tudo o que fazem”

O documentário Tiny Shoulders, que passa este domingo, Dia Internacional da Mulher, no canal Odisseia, vai às entranhas da Mattel e da cultura dos últimos 60 anos para expor a transformação da boneca mais famosa do mundo. Ideal sexista ou personagem para as crianças terem o papel que quiserem na sua história?

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Hulu/Odisseia

A Barbie clássica está permanentemente em bicos de pés: se fosse uma mulher real, tombava com as suas proporções improváveis. E no entanto sobre os seus ombros minúsculos recai, há 60 anos, o peso da representação das mulheres. É essa imagem que dá título a Tiny Shoulders: A Repensar a Barbie, o documentário que o canal Odisseia exibe este domingo às 22h30 e que acompanha a operação Project Dawn, nome de código à moda dos serviços secretos que resume a tentativa de reposicionar a boneca mais famosa do mundo. Mas o documentário de Andrea Nevins é também um exame ao poço de contradições e vértice histórico que é a Barbie.

Originalmente realizado para a plataforma de streaming Hulu (não disponível em Portugal), Tiny Shoulders acompanha a operação mediática e comercial que culminou em Janeiro de 2016 com o lançamento de novas bonecas com corpos à medida do seu tempo – a curvilínea, a alta, a pequena, e suas 33 variações que fizeram capa da Time e correram mundo, inclusive nas páginas do PÚBLICO. Os meros nomes dos novos modelos foram escalpelizados pela equipa da fabricante Mattel ao milímetro.

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Alguns exemplos da nova linha de 2016

“É ‘curvy’ ou ‘plus size’?”, pergunta a equipa maioritariamente feminina, que no jargão que se impôs nas últimas décadas seria descrita como sendo composta por “mulheres reais”. Os termos “são minas anti-pessoais culturais”, avisa a relações públicas Michelle Chidoni, mãe trabalhadora que quase chora na viagem de carro para o trabalho por deixar a filha pequena em casa a caminho de mais um dia Project Dawn. “Se não lhes dermos um nome, vai ser ‘a Barbie gorda’, porque dá um bom título”, suspira.

Tudo na conversa telefónica de Andrea Nevins com o PÚBLICO faz eco da frase da responsável de design da Barbie na Mattel, Kim Culmone: “O corpo dela não é só um corpo.” Quase toda a gente tem uma opinião sobre a Barbie, a boneca criada em 1959 por Ruth Handler para dar algo mais com que brincar e contar histórias à sua filha Barbara. Afinal, ela tem uma taxa mundial de reconhecimento de 98%. “Mas entrei no mundo da Barbie como agnóstica. Não era pró nem contra, estava só curiosa sobre porque é que ela é há tantos anos um tal íman de críticas. E sobre o que isso diz acerca de onde estamos como mulheres. Foi uma surpresa isto ter acabado por ser uma espécie de história de amor, porque comecei mais inclinada para a perspectiva feminista que questiona uma boneca que parece uma fantasia masculina”, admite.

A Barbie é uma construção, mas é também uma contradição. Por um lado, encerra uma era em que as bonecas eram sobretudo representações de bebés e só permitiam às meninas que com elas brincavam projectarem-se como mães. A Barbie, ou melhor Ruth Handler, teve de lutar para se afirmar “num mar de homens”. Ficar presa em casa? “Merda, era horrível”, ouvimo-la dizer no filme.

Teve de lutar para a sua boneca poder ser adulta. “[Os executivos da Mattel] achavam que uma boneca com mamas não era apropriada”, explica. Finalmente, em 1963, tão sintonizada com os novos tempos, saía a Barbie “Rapariga de Carreira”. Anos mais tarde, houve a Barbie que vinha com uma balança fixada nos 50 quilos e um livrinho na mão. Na capa: “Como perder peso”. Na contracapa: “Não comas”.

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Ruth Handler, ao centro, inventora e executiva num "mar de homens"

De regresso a Project Dawn, Kim Culmone e a sua equipa sonharam tornar a Barbie mais século XXI, abraçando o seu amor pela boneca e querendo mudar a frase feita “‘é tão Barbie’ ou ‘é uma Barbie’”. E Andrea Nevins filma o trabalho da equipa, vislumbra a sua vida doméstica, as suas relações não heteronormativas, os bastidores de uma batalha campal em plena guerra cultural.

"Tudo o que não queríamos ser"

A autora de Tiny Shoulders: A Repensar a Barbie chegou ao tema através de uma amiga que trabalha na empresa. Teve de assinar uma pilha de contratos de sigilo e de permitir que a Mattel visse o filme antes da estreia para garantir que não havia violações do segredo industrial do copyright da boneca. Passou mais de um ano a filmar, e começou a montagem quando eclodia o caso Harvey Weinstein, Donald Trump avançava para a presidência mesmo assumindo que podia grab’em by the pussy e saía para a rua a histórica Marcha das Mulheres de 2017.

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A equipa da Mattel a analisar as propostas da nova linha de 2016

“Isso galvanizou-nos para contar uma história sobre quão difícil é ser mulher no mundo, sobre como somos questionadas por tudo o que fazemos  não só nós como seres humanos, mas até os nossos avatares, as bonecas”, diz a realizadora. A sua relação com a Barbie foi mudando, à medida que entrevistava académicas e historiadoras incontornáveis como Gloria Steinem, Amanda Foreman, Peggy Orenstein e Roxane Gay, mas também pediatras, crianças, mães.

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“Na infância, a Barbie fazia parte do meu ecossistema de brinquedos, mas não tinha o papel principal. Brincava com os G.I. Joe e com a minha manada de peluches, mas não era a líder”, conta. Deixou a filha ter Barbies, mas baniu as Bratz – a hipersexualização das bonecas era para ela “uma mensagem difícil de engolir”. Hoje valoriza a Barbie como ferramenta para meninas e meninos. “Esse é o poder duradouro da boneca num mundo em que as mulheres ainda não podem viver os seus sonhos inteiramente nem desempenhar todos os papéis que querem ter no mundo. Que espantoso é ter um brinquedo com o qual todas as regras desaparecem. Até o mundo se tornar um lugar paritário, é ter uma boneca que nos permite contar a nossa própria história”, entusiasma-se ao telefone.

A chegada da Barbie dá uma carreira a muitas mulheres, quer no imaginário com o seu fatinho de Presidente dos EUA, quer na vida real com os cargos a que, nos anos 1950 e 60, fez ascender Ruth Handler ou mais tarde deu à CEO da Mattel Jill Bard. Mas nos anos 1970, quando as manifestações feministas começaram a pôr nos cartazes a reivindicação “I am not a Barbie doll”, não interessava se a Barbie era astronauta ou médica, além de uma pin-up impossivelmente esguia. “A Barbie era tudo o que não queríamos ser”, declama Gloria Steinem.

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A activista não esquece que a boneca nasceu de olhos semicerrados, dócil, e que só nos anos 1970, quando as vendas começaram a cair, eles ficariam bem abertos. A cintura da Barbie até foi engrossando nos anos 1980, mas nos anos 2000 já se estava a debater o espaço entre as suas coxas  mais um território de luta de imagem corporal e ideais de beleza. Ameaçada pelas Bratz, por outros brinquedos e bonecas e pela crítica crescente, académica e social, os resultados das vendas são problemáticos, constata a Mattel logo no início do documentário. O Project Dawn é uma missão cultural de Kim Culmone, mas Gloria Steinem não desarma. A Barbie, diz, “foi forçada a mudar pelo poder do dólar”.

Tiny Shoulders é quase um thriller, um crescendo até ao grande desfecho do projecto, humanizado pela equipa dedicada vestida de t-shirts Barbie e consumida pelos nervos. Há uma cena no filme em que uma menina se ri das curvas da nova Barbie mais realista. Um estudo publicado já no ano passado mostra que as crianças ainda vêem com preconceito corpos menos esguios. Andrea Nevins contrapõe que “o modelo da boneca curvilínea de cabelo azul esgotou e continuou a ser um dos seus best sellers”. Mas concorda: “Ainda precisamos de muita representação [diversificada] para que não pareça estranho ser-se curvilínea. Se só se vir um tipo de corpo nos anúncios, ou se esse corpo for criticado na publicidade às dietas, isso cria juízos de valor que não temos à nascença.”

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