No último videoclube de Lisboa ainda se alugam DVD em tempos de streaming (e pirataria)

A Cineteka é o último videoclube de Lisboa e um dos poucos resistentes no país. Com quase 16 mil filmes e planos flexíveis com envio para todo o país, o negócio de Gonçalo Peres subsiste na era do streaming e da pirataria, num espaço de escritórios em Braço de Prata.

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Daniel Rocha

O elevador do Edifício Simol, em Braço de Prata, Lisboa, é rápido a chegar ao segundo andar. Desbravado o labiríntico corredor de escritórios, lá se encontra o 230, de porta escancarada e bem mais ensolarado do que os demais. A receber-nos está Gonçalo Peres, o proprietário da Cineteka. A emoldurá-lo, prateleiras repletas de caixas de DVD e Blu-ray. Espalhados pelo diminuto escritório, quadros com imagens de filmes emblemáticos, como Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994), Scarface (Brian de Palma, 1983) e Trainspotting (Danny Boyle, 1996), lado a lado com o Joker de Heath Ledger e Audrey Hepburn. É este o último videoclube de Lisboa — e um dos últimos do país.

Gonçalo, 46 anos, senta-se à secretária, frente a um armário com dezenas de arquivos onde estão todos os discos. O primeiro videoclube que frequentou foi o Indiana Jones, no Centro Comercial das Olaias. Lembra-se da experiência de alugar um filme pela primeira vez, o Poltergeist (Tobe Hooper, 1982). Tinha 12 anos: “Fui ver o filme, acagacei-me todo.” Começou, depois, a alugar filmes sucessivamente, “às vezes com amigos, outras com namoradas”. Formado em Gestão de Empresas pelo ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, foi na programação que encontrou a principal actividade profissional, que continua a exercer. O bichinho pelo cinema nasceu “numa altura em que a Internet estava a explodir”.

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Sempre gostou de alugar filmes, mas não de os ter: “Não gosto de possuir coisas.” Achava que os videoclubes “eram muito centralizados nas novidades da semana e nos filmes mais comerciais” e, por isso, decidiu criar um site que ajudasse as pessoas a chegar a outros conteúdos.

A experiência começou em casa, com o envio de filmes por correio, por volta de 2004. Daí aventurou-se numa loja física no Parque das Nações, em 2006. Tinha também artigos de merchandise e um café, que resistiu até perto de 2014, ano em que se mudou para a morada actual. O site, esse, ainda é o mesmo desde os primórdios. Assume que possa “já estar um pouco desactualizado em termos de design”, mas o objectivo mantém-se: “ajudar as pessoas a encontrarem filmes de uma forma mais informada”, com possibilidade de pesquisa por equipa técnica, prémios e festivais. Tenta que a selecção disponível seja “a mais variada em termos de origem, de cinema do mundo”, equilibrando entre o comercial e o independente.

O site funciona à base de lista de prioridades dos clientes, com uma secção a anunciar os próximos lançamentos. O interesse nesses dita o número de cópias a encomendar — Parasitas (Bong Joon Ho, 2019), vencedor do Óscar para Melhor Filme, que chegaria na semana em que o visitámos, vinha em dose tripla. “Há uns anos havia filmes dos quais comprávamos dez, 12, 15 cópias”, recorda, sobre um acervo que já vai em mais de 15.800 filmes. No Cineteka há também recomendações associadas a cada título, ao estilo Netflix, tecidas por Gonçalo.

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Um negócio de bairro

Quando entra na sala, Natália Coelho lança um “Boa tarde, ora viva!” bem sonoro. Traz na mala a minissérie Chernobyl (Johan Renck, 2019), da HBO, para devolver. “Gostei imenso, mas não sei se não estará dramatizado a mais”, atira a octogenária. Entre filmes e séries, já lá vão 11 anos a frequentar a Cineteka. Duas a três vezes por mês, Natália aparece para visitar Gonçalo e levar para casa dois ou três filmes. Isto porque prefere o formato físico: “Tenho muito mais facilidade em andar para a frente e para trás com o filme.” Actualmente, diz, “é um bom motivo para uma caminhada”.

“Uma das coisas de que também gostava, com a loja, era as pessoas terem um pretexto para sair de casa, para um certo convívio”, concretiza Gonçalo. “Foi uma coisa que sempre gostei de ver e tenho pena de já não conseguir contribuir [tanto] para isso.” Actualmente, no escritório em Braço de Prata, ainda se “acaba por falar sobre filmes e por haver uma certa familiaridade”, mas a cumplicidade resume-se a clientes de longa data ou vizinhos.

“Às vezes, há clientes que não ligam apenas para requisitar um filme, mas também para perguntar como está a correr tudo e desejar boa sorte nos estudos”, diz Sofia Parreira, funcionária na Cineteka desde Fevereiro de 2019. Aos 20 anos, Sofia concilia este emprego com a universidade e tem bastantes memórias do espaço anterior, onde a mãe era cliente quase desde o começo. “Quando era pequenina, para mim e para a minha irmã era fantástico. Adorávamos tudo, desde chegar e ver os DVD e os posters, a vermos um filme em casa, em família.”

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Um “nicho” de 150 clientes activos

Com vários planos mensais disponíveis e envio pelos CTT, o negócio, para Gonçalo, “é um nicho” de cerca de 150 clientes activos. Não há, diz, “um perfil típico”, mas há “muitos pais que alugam filmes para os filhos”. A partir dos 30 anos, tem clientes espalhados por todo o país, com gostos exclusivamente comerciais, outros mais arthouse, e os que misturam. Também acontece receber pedidos de filmes específicos para exibição em âmbito profissional, por exemplo. “Se não o tivermos [em catálogo] e estiver disponível em Portugal, compramo-lo, mesmo que seja só para aquele cliente”, confessa, rindo-se perante a possibilidade. “Até pode ser só uma pessoa a ter interesse, mas depois, estando no site, talvez haja mais alguém a descobri-lo.”

O filme mais alugado na Cineteka, até hoje, é A Origem (Christopher Nolan, 2010). Seguem-se Morte num Funeral (Frank Oz, 2007) — uma excentricidade britânica que foi fortemente recomendada por um antigo funcionário do espaço — e The Departed – Entre Inimigos (Martin Scorsese, 2006).

Gonçalo não vê todos os filmes que chegam ao espaço — muito menos “os mais comerciais” —, não usa serviços de streaming — “Tenho aqui tantos filmes para ver, para quê procurar mais? — e também não faz pirataria. Ao cinema ainda vai com regularidade, sobretudo “ao Cinema City Alvalade, porque não está dentro de um centro comercial e tem uma selecção equilibrada”. Quando questionado pelo filme preferido, hesita: “Isso é sempre muito difícil, eu não faço essas listas na minha cabeça”. Mais tarde na conversa, avança O Despertar da Mente (Michel Gondry, 2004) como o eleito. A vida familiar, confessa, não lhe permite ver mais do que “dois ou três filmes por semana”. Mesmo assim, todas as sextas-feiras tenta levar um ou outro para casa, entre animações e “filmes de aventura”.

“Que experiência posso oferecer às pessoas?”

O programador acredita que, hoje em dia, o cinema já não ocupa o mesmo espaço na sociedade. “A capacidade de ver um filme perdeu-se um bocadinho e o advento das séries e dos vídeos de YouTube também mudou as pessoas, [que preferem] ver coisas mais curtas.” Sobram os filmes com “muita mediatização” para captar a atenção colectiva. Na loja física, o decréscimo do negócio “coincidiu com a altura da troika”. Mesmo assim, para Gonçalo, “nunca foi uma situação de desespero ou de injustiça, enquanto muitas pessoas ficavam altamente indignadas com a pirataria e estavam sempre a perder energias por isso”. A “guerra” acabou “a partir do momento que a Netflix entrou em Portugal”, algo que nunca lhe “tirou o sono”.

Após por anos a digladiar-se, a Associação do Comércio Audiovisual de Obras Culturais e de Entretenimento de Portugal (ACAPOR), que defendia os interesses dos videoclubes, fechou por falta de associados. De “mil a dois mil videoclubes em Portugal” passou-se para apenas um punhado. Gonçalo não consegue precisar quando ainda subsistem, admite. Manteve, entretanto, uma só preocupação: “Que experiência posso oferecer às pessoas?”

Para Alexandre Froes, 46 anos, “um bocado viciado em cinema”, a boa experiência passa pelo acto de ir buscar o DVD e ver em casa. Chega a ir à Cineteka “duas a três vezes por semana”. Quando o conhecemos, Alexandre estava a devolver uns desenhos animados que levou para os filhos, Papuça e Dentuça (Ted Berman, Richard Rich, Art Stevens, 1981), e, na volta, levou o português A Herdade (Tiago Guedes, 2019).

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Há três anos que o negócio está estável, vai partilhando Gonçalo. Já não existe “aquela motivação”, confessa, mas continua a “olhar para isto como um filho”. “Há uma série de clientes que [me] dizem para continuar. Sinto que, para eles, isto é espectacular, ainda mais do que para mim (…) E têm receio de que possamos fechar.” Isso não antecipa, mas ri-se face à possibilidade: “Não faço ideia até quando vão continuar a sair filmes em formato físico, não tenho controlo sobre isso.”

“Mas se um dia, por acaso, não quiser continuar ou não puder”, Gonçalo não vai vender os filmes. Prefere doá-los a uma biblioteca. Quando lhe pedem para vender filmes que já saíram de circulação, a reposta é sempre a mesma: “Não posso vender”. “Se [a pessoa] ficar com ele em casa, vai vê-lo uma vez ou duas, mais ninguém”, justifica. No fim de contas, em todo o altruísmo cinéfilo que manifesta, na Cineteka, reduto final lisboeta do aluguer de vídeo físico, só importa uma coisa. “Amanhã vai ligar-me uma pessoa a perguntar onde é que um certo filme está”, remata Gonçalo. “E ele vai estar lá.”