Hipoglicemia: um desequilíbrio que pode custar a vida

Há quem as olhe como um mero sintoma da diabetes, mas não são. As hipoglicemias acontecem quando o açúcar no sangue diminui mais do que devia e as consequências para a saúde podem ser fatais.

Foto
Getty

Cansaço, confusão mental, dores de cabeça, tonturas, fome intensa, tremores, suores frios e palpitações. Estes são apenas alguns dos sintomas de uma hipoglicemia e a lista não acaba aqui, podendo mesmo estender-se para algo tão grave como perda de consciência, coma ou a própria morte. É isto que as pessoas com diabetes enfrentam de cada vez que o nível de açúcar no sangue (glicemia) desce mais do que seria suposto. E não, isto não é normal na diabetes, razão por que deve ser olhado com mais atenção, não só pelos próprios doentes, como pelos cuidadores e até pelos profissionais de saúde. Infelizmente, nem sempre é isto que acontece. De acordo com um estudo levado a cabo pela Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP)[1], seis em cada dez episódios de hipoglicemia não são convenientemente tratados. E se tivermos em conta que Portugal é o segundo país da Europa com maior prevalência de diabetes (14,2%), só ultrapassado pela Alemanha (15,3%), de acordo com os mais recentes dados da International Diabetes Federation (IDF Diabetes Atlas 2019), rapidamente percebemos a eventual dimensão do problema no nosso país. Para o minimizar, basta aprender a reconhecer e tratar os sintomas de hipoglicemia, situação que ocorre quando o valor da glicose (açúcar) no sangue desce abaixo dos 70 mg/dl.

Mas aquilo que pode parecer muito simples não o é e implica grande envolvimento por parte do doente, que todos os dias lida com a incerteza de vir a ter, ou não, uma hipoglicemia.

Viver em busca de equilíbrio

“Uma luta constante.” É desta forma que Emiliana Querido, 38 anos, descreve o impacto da hipoglicemia na sua vida, desde que há cerca de nove anos lhe foi diagnosticada diabetes tipo 1. “A vida de uma pessoa com diabetes passa por estar constantemente a lutar pelo equilíbrio dos valores, mas nem sempre se consegue controlar todos os momentos e todos os factores que podem suscitar uma hipoglicemia”, refere a professora e presidente da Federação Portuguesa das Associações de Pessoas com Diabetes (FPAD). Quanto à forma como um episódio de hipoglicemia interfere na sua vida, afirma que “tem um grande impacto” e justifica: “Não me deixa estar a 100% e com a energia de um dia normal sem hipoglicemia, portanto não sou tão produtiva.” E ainda que agora “saiba prever com mais facilidade a tendência para as desenvolver e consiga tratá-las da melhor forma”, reforça que “as hipoglicemias afectam todo o decorrer do dia de uma pessoa activa, que tem o seu trabalho e a sua vida familiar”.​

Entre os sintomas que lhe indicam que poderá estar a registar uma diminuição acentuada da glicemia, Emiliana Querido destaca em primeiro lugar “a confusão mental e o cansaço, depois os suores e a fome”. “O coração começa a bater muito rápido e as pernas a fraquejar. É complicado, pois quando não são perceptíveis facilmente e já estamos com os níveis de açúcar muito em baixo, quando nos damos conta estes sintomas agravam-se e podemos necessitar de ajuda para conseguir tomar as medidas necessárias”, reconhece.

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a hipoglicemia é uma situação que não acontece apenas às pessoas com diabetes tipo 1, mas também às que têm diabetes tipo 2, a forma mais comum da doença. José Cancella de Abreu, 67 anos, sabe isso muito bem, pois conta já com quatro décadas a lidar com as imprevisibilidades desta patologia. Mal-estar geral, lentidão no raciocínio e o ficar “de certo modo parado e sonolento” são os sinais que aprendeu a associar à hipoglicemia, a qual trata de imediato “dependendo dos valores, com um líquido açucarado ou com um simples pacote de açúcar”, fazendo ainda “medições de monitorização da glicemia de cinco em cinco minutos” para ter a certeza de quando a situação está ultrapassada.

Danos cerebrais como consequência

Um dos maiores receios de Emiliana Querido, no que diz respeito às hipoglicemias, prende-se com “as consequências a longo prazo, como danos cerebrais e cardíacos graves”. João Raposo, director clínico da APDP confirma que “a longo prazo, as hipoglicemias podem eventualmente provocar alterações nas capacidades de memória ou nalgumas outras capacidades intelectuais”, além de que “são uma das causas mais frequentes da perda do controlo da diabetes”. A gestão é complexa, sobretudo se tivermos em conta que “as hipoglicemias podem ser completamente assintomáticas ou provocar entre sintomas ligeiros a sintomas mais intensos, como sensação de morte iminente”, além de que “podem ainda ser causa de alteração de comportamento, convulsões, perda de sentidos ou mesmo morte”, salienta o endocrinologista.​

Mas porque é que as hipoglicemias acontecem? As causas nem sempre são claras, todavia sabe-se que podem registar-se quando a terapêutica para a diabetes “fez mais efeito do que o pretendido”. “Porque a pessoa ingeriu menos hidratos de carbono do que planeava, fez mais actividade física ou porque o tratamento foi inesperadamente mais activo do que o habitual”, aponta o médico, que sublinha a necessidade de estes episódios serem relatados às equipas de saúde que acompanham o doente, “especialmente se as causas das hipoglicemias não forem evidentes ou se estas se repetirem ou ainda se as hipoglicemias tiverem sido graves”.

Quem tem maior risco de hipoglicemia

Se é verdade que todos os doentes com diabetes podem registar hipoglicemias, também se sabe que alguns fármacos para tratar a doença contribuem mais do que outros para essa situação. De acordo com João Raposo, “as terapêuticas que têm uma acção directa no pâncreas, como as sulfonilureias ou a insulina, têm um maior risco de hipoglicemias”, razão por que “as pessoas que usam estes medicamentos deverão ser ensinadas a vigiar os níveis de glicemia com maior frequência”. Ainda assim, o especialista deixa claro que “todas as pessoas com diabetes deverão reconhecer os sintomas e, perante a suspeita, deverão verificar os níveis de glicemia”.​

Como se deve tratar?

Perante a confirmação de hipoglicemia – ou no caso de haver uma forte suspeita – João Raposo corrobora os passos a seguir enunciados por Emiliana Querido e José Cancella de Abreu, ou seja, a “ingestão de um açúcar de absorção rápida – glucose ou eventualmente sacarose, na forma de um pacote de açúcar - até que os valores de glicemia se encontrem normais”. Posteriormente, “deverá fazer-se uma ingestão de hidratos de carbono de absorção mais lenta, como pão, bolachas, massa, arroz ou batatas, por exemplo”. Porém, há muitas situações em que a hipoglicemia provoca desmaios e, nesse caso, “pode ser necessário fazer uma injecção de uma hormona com acção contrária à insulina, o glucagon, e/ou telefonar para o 112”, esclarece.​

Sendo importante impedir a repetição de episódios de hipoglicemia, o médico frisa que “devemos usar estratégias que minimizem o seu risco”. Nesse sentido, lembra que “as equipas de saúde deverão escolher as terapêuticas que tenham a eficácia necessária e o menor risco de hipoglicemia associado”, além de que “as pessoas com diabetes deverão ser capazes de adaptar a sua terapêutica às situações em que o risco de hipoglicemia aumenta, bem como de monitorizar as suas glicemias de acordo com a frequência que lhes seja recomendada nessas situações”.

Conversar mais sobre hipoglicemias é preciso

Quanto maior conhecimento as pessoas com diabetes tiverem, tanto melhor irão conseguir evitar - ou gerir - as hipoglicemias. João Raposo concorda, lembrando que o ensino deste tema “deve ser um processo contínuo”. “A informação sobre as hipoglicemias é frequente no início do processo de doença, onde elas não são muito frequentes, mas não é revista em consultas sucessivas”, lamenta. Para complicar ainda mais, “as hipoglicemias podem tornar-se assintomáticas ou os seus sintomas não serem reconhecidos como tal” o que pode contribuir para que “as pessoas não tomem as decisões certas sobre o seu tratamento”. Outro factor que também não ajuda ao processo, nas palavras do director clínico da APDP, é que “por vezes, as pessoas optam por corrigir as hipoglicemias não correctamente, optando por ingerir alimentos que lhes são habitualmente proibidos”.​

Não só as próprias pessoas com diabetes precisam de estar mais informadas sobre as hipoglicemias, como os próprios familiares e cuidadores. Esta é uma das conclusões do estudo The TALK-HYPO[2], segundo o qual, 64% de familiares de pessoas com diabetes sentem-se preocupados ou ansiosos relativamente aos riscos associados à diminuição de açúcar no sangue e 76% acreditam mesmo que mais conversas sobre o tema seriam proveitosas para a melhoria de vida das pessoas com a doença.

Foto

[1] Ratzki-Leewing, Alexandria, Ehsan Parvaresh Rizi e Stewart B. Harris (2019), “Family Members: The Forgotten Players in the Diabetes Care Team (The TALK-HYPO Study)”, Diabetes Therapy, 10:2305–2311.


[2] Andrade R. et al. (2019), “HipoDiab: Hipoglicemias sintomáticas vs. assintomáticas em pessoas com diabetes tipo 2 insulinotratadas: identificação, causa e tratamento”, estudo apresentado no Congresso da Sociedade Portuguesa de Diabetologia 2019.