Restituição de arte africana deve ter em conta contexto de cada peça, defende Sociedade de Geografia de Lisboa

Instituição terá à sua guarda cerca de 15 mil objectos provenientes de África, a maioria dos quais chegou por doação, asseguram os seus responsáveis.

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As peças que integram a exposição Culturas e Geografias resultam de uma doação da Alemanha DR

A Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) considera que uma possível restituição de obras de arte a países que estiveram sob administração colonial portuguesa deve ter em conta o contexto, e alerta para a necessidade de se estabelecer as condições em que as peças foram trazidas.

“Cada caso é um caso”, defende, em declarações à agência Lusa, o presidente da SGL, Luís Aires Barros, que questiona se Itália e França vão devolver ao Egipto os obeliscos que ornamentam as praças de S. Pedro e da Concórdia, respectivamente em Roma e em Paris. “A pilhagem não foi o ‘modus operandi’ português”, argumenta, esclarecendo que “todo o acervo da SGL é, basicamente, doado”.

O secretário-geral da SGL, general João Carlos Geraldes, argumenta por seu turno que o caso de Portugal “é específico” e “tão diferente quanto foi o nosso estar no mundo”.

A SGL, com mais de 150 anos, tem uma vocação de exploração científica e a sua história cruza-se com a política colonial portuguesa, da monarquia à República. Foi uma missão da SGL que fez o levantamento dos então territórios ultramarinos, e muitos dos seus associados lideraram missões científicas. O Museu da SGL conta com várias colecções de arte de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Congo, Benim, Moçambique, Guiné-Bissau e Egipto, entre outros países. Segundo a sua directora, Manuela Cantinho, “a maioria das peças [chegou ao museu] por doação”, e “sabe-se o contexto de onde vieram”. A responsável estima que a SGL tenha cerca de 15 mil objectos provenientes de África; já as peças que ali chegaram provenientes da Índia e do Brasil, territórios onde a presença portuguesa também durou séculos, são escassas.

“A história de como as colecções se constituíram é fundamental”, alerta Manuela Cantinho, lembrando que ela se confunde muito “com a história da Antropologia neste país”. “Os grandes nomes da Antropologia portuguesa, como Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, eram sócios da SGL.” São estes e outros homens que, “a dado passo, consideram que é preciso fazer recolhas etnográficas, e solicitam peças às ex-colónias”, uma opção fortalecida pelas várias exposições internacionais que entretanto se realizaram, diz a responsável.

“Os antropólogos e os historiadores têm algum conhecimento acerca de como as colecções eram constituídas, o trabalho de campo, a dificuldade que havia em obter determinadas peças. Os africanos não se desfaziam de certos objectos e não davam toda a informação sobre eles”, diz ainda.

Diferenças de patamar

“Há uma prática de recolha científica de que a maior parte da população não tem noção, e, generalizar que tudo o que foi recolhido foi ‘saqueado’ é desconhecer como a antropologia se foi instalando. Sabemos que certos países, nomeadamente a Alemanha e a Bélgica, tiveram outras práticas, mas não é o caso de Portugal”, assegura Manuela Cantinho à Lusa, sublinhando as diferenças que houve de país para país no que diz respeito ao “contexto da recolha”, e insistindo que “nós nunca tivemos essa intenção de ‘sacar'”.

“Nós recolhemos uma ínfima parte, e por impulsos, no final do século XVII, depois na segunda metade do século XIX, e, por último, na segunda metade do século XX. Nos acervos do Museu Nacional de Etnologia, [das Universidades] de Coimbra e até do Porto, estão alguns milhares de objectos, enquanto nos museus etnológicos alemães estão cerca de 500 mil objectos recolhidos em meia dúzia de anos, em diversos continentes.”

Manuela Cantinho cita o caso de Henrique de Carvalho, alvo do volume Henrique de Carvalho, a expedição (1884-88). Formado no Colégio Militar, Henrique de Carvalho iniciou em 1884 a sua viagem de exploração àquele que era então o Império Lunda, no Nordeste de Angola. Da equipa do explorador fizeram parte o farmacêutico Agostinho Sesinando Marques, que tinha como objectivo a recolha de ervas medicinais para a constituição de herbários que estão hoje nos museus de Lisboa e de Coimbra, e o fotógrafo Manuel Sertório de Almeida.

Henrique de Carvalho trouxe muitas peças que foram oferecidas pelos chefes locais; de outras, encomendou cópias aos artesãos, pois não lhe foram entregues. “Está tudo anotado no seu diário. Há peças de que nenhum africano se desligaria”, explica a responsável.

“O devolver peças tem várias implicações, e o principal não é a peça em si, é o conhecimento que adquirimos sobre a peça. A excelência da cultura africana está nesse conhecimento”, observa ainda Manuela Cantinho, ressalvando que “uma grande parte da arte africana em Portugal está em mãos privadas”.

Histórias “intrigantes"

“Existem histórias que merecem a nossa reflexão. Por exemplo, a da colecção exposta actualmente no Museu de História Natural e da Ciência, da Universidade do Porto, Culturas e Geografias, que resulta de uma permuta entre Portugal e a Alemanha. O nosso país decidiu em 1927 devolver à Alemanha as colecções arqueológicas da Assíria, que tinha apreendido durante a Primeira Guerra Mundial. Como recompensa, diversos museus de Berlim fizeram uma selecção de objectos, nomeadamente da Melanésia, dos Camarões, da Grécia e do Egipto, que enviaram para Portugal. Muitas destas intrigantes histórias só muito recentemente têm sido investigadas”, disse Cantinho.

“Outro exemplo: a colecção de sarcófagos egípcios e as respectivas estatuetas [foi] uma oferta do Museu do Cairo à SGL em 1893, como ofereceu a outras sociedades científicas e museus da Europa”, lembra Luís Aires Barros.

O espólio ficou em Portugal na sequência da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e do apresamento dos navios de bandeira alemã que estavam em águas portuguesas. Outro caso é um conjunto de peças do Benim, adquiridas por um cidadão alemão que as ofereceu ao museu da SGL.

“Nós não somos a Alemanha, que organizou campanhas de recolha de obras. Hoje o Museu em Berlim tem 600 mil peças, quando nós temos umas dezenas”, insiste Manuela Cantinho. Portugal, admite, beneficiou destas campanhas alemãs de recolha, pois ficou “na posse de algum espólio”.

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