Santiago do Chile e o #MarzoSinMiedo

Com a chegada de Março e o fim do Verão, voltaram em força as manifestações. Esta segunda-feira, as ruas encheram-se de manifestantes. Perante uma demonstração pacífica, na qual milhares de pessoas, incluindo crianças, dançavam na alameda, a polícia voltou a atacar directamente a multidão.

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Susana Anastácio

Cheguei ao Chile através do Deserto de Atacama e, guiada pela errância de uma jornada longa pela América Latina, acabei por entrar num voo em direcção a Santiago do Chile. Ao corrente do clima de manifestações que se prolonga há quatro meses, foi com surpresa que percebi que o hostel onde ia ficar estava a uns meros 20 passos da primera línea.

Desde 18 de Outubro que, diariamente, o povo chileno sai à rua para se manifestar. A violenta repressão desde o primeiro dia de protestos por parte da polícia chilena, os Carabineros, é o principal motivo para os acontecimentos que marcam o que vejo da minha janela todos os dias.

A famosa primera línea actua para que na Plaza Dignidad (antigamente Plaza Italia) os cidadãos se possam manifestar de forma segura. É constituída sobretudo por jovens do SENAME, uma instituição de acolhimento de crianças em risco, que no entanto tem sido palco de maus-tratos, abusos físicos e sexuais, mortes e onde se juntam crianças retiradas a famílias problemáticas a jovens delinquentes.

“Não temos nada a perder”, dizem estes jovens que encontraram uma missão de vida com a revolução. Eles, os cabros chicos, enfrentam as constantes investidas violentas dos pacos (denominação negativa dada aos polícias chilenos) para que todos aqueles que se querem manifestar o possam fazer de forma segura e pacífica, uma centena de metros mais acima. Aí, e apesar do gás que constantemente nos faz chorar, encontra-se um clima de celebração, com música, muitas bandeiras e pessoas com um sorriso na cara e abraços prontos ao acolhimento.

Com a chegada de Março (e do #MarzoSinMiedo) e o fim do Verão, voltaram em força as manifestações. Esta segunda-feira, dia 2, na Super Lunes as ruas encheram-se de manifestantes. Perante uma demonstração pacífica, na qual milhares de pessoas, incluindo crianças, dançavam na alameda, a polícia voltou a atacar directamente a multidão. Aqueles que, como eu, questionam ou questionaram a necessidade da primera línea rendem-se nesse momento e torna-se impossível não sentir uma admiração desmedida perante a garra do povo chileno.

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Susana Anastácio

O centro da cidade parece ter sido vandalizado, as paredes estão repletas de graffiti, pinturas, colagens e a primeira reacção é de condenação. Contudo, à medida que fui ouvindo as explicações da Ayxa durante o tour gratuito Chile Despertó, percebi que existe uma mensagem que não pode morrer. São demasiados meses e demasiadas vidas para que a força se esmoreça sem ver mudanças. O Chile despertou e não há volta atrás!

É impossível explicar toda a conjuntura social e económica num artigo, mas existe algo a que não se pode escapar: a Constituição. O texto vem da ditadura militar e continua em vigor até aos dias de hoje, sendo que uma mudança da mesma é uma das principais reivindicações dos manifestantes. Entre outras coisas, consagra um Estado que retira a si mesmo a prestação de serviços como saúde ou educação, deixando-os nas mãos de empresas privadas e intervindo apenas se considerado necessário. Dia 26 de Abril, um referendo vai votar a mudança de Constituição e os ânimos entre o “Apruebo” e o “Rechazo” vão subindo de tom.

No segundo dia em Santiago do Chile, saí à rua para observar. Desde esse dia, e até hoje, eu e o Simone, italiano, fomos integrados num dos grupos que todos os dias se junta e se cuida mutuamente. No primeiro dia deram-me uma máscara e muitas foram as pessoas que se ofereceram para me borrifar a cara de água, sempre que todos nos afastávamos com os olhos vermelhos e ataques de tosse, devido às bombas de gás lacrimogéneo atiradas pelos Carabineros. Entre todos reina a entreajuda e da minha parte, e de todos os que ali chegaram, não existe uma ponta de medo ao ver um dos miúdos de máscara em riste.

A violência infligida pelos pacos é tema recorrente, mas por muitos vídeos que se vejam nada é igual a presenciar. Nessa primeira sexta-feira, dentro do meu quarto, olhei pela janela. No passeio estava um homem parado, com cerca de 30 anos. Ao passar, um dos pacos apontou-lhe uma arma à cara. Desta arma não saiu uma bala, saiu um líquido e o homem ficou estendido no chão a gritar, enquanto várias pessoas o socorriam.

Nos últimos dias, as palavras do Presidente Piñera tornaram-se ainda mais violentas e nas ruas fala-se abertamente do que parece ser a única teoria com algum sentido. Existe a intenção de que a violência desmedida ressurja, para que se possa voltar ao estado de excepção.

Fico pela rua até àquele momento em que toda à gente sabe que vai ser atacada indiscriminadamente. Há dois dias, ao entrar com o Simone no hostel, encontrámos o habitual ambiente descontraído. Subimos para a janela. Passados alguns minutos chegou a polícia. Vários rapazes, por entre o fumo que queima a vista e as vias respiratórias, continuaram a atirar pedras aos carros das autoridades. Nesse momento, um deles viu que a porta do alojamento estava aberta. Calmamente, chegou mais perto e fechou-a de forma suave e cuidadosa. Depois pegou numa pedra, atirou-a e correu pela sua vida.

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