O medo da página em branco

Escrevo regularmente há cerca de dez anos e nunca me tinha acontecido — não consigo escrever. Não mais do que um parágrafo. Escrevo um parágrafo e bloqueio.

Foto
ASHLEY EDWARDS/Unsplash

Esta semana não consigo escrever. Já várias vezes gozei com o chamado “bloqueio de escritor”, o célebre medo da página em branco. E agora isto, deve ser castigo. Escrevo regularmente há cerca de dez anos e nunca me tinha acontecido — não consigo escrever. Não mais do que um parágrafo. Escrevo um parágrafo e bloqueio. Uma vez, ouvi o António Lobo Antunes dizer que “fazer romances era como escrever uma composição na escola”. Sempre gostei de composições. Nunca bloqueei a escrevê-las. Pegava na caneta BIC cor-de-laranja e no caderno pautado, com a Mônica desenhada a azul-clarinho em todas as páginas, e punha-me a discorrer — sobre o meu cão rafeiro, o Pluto; sobre a mana a pontapear ou a acotovelar dentro do barrigão da mãe, que se transformava a cada dia numa forma esquisita; sobre o camião do pai e a pele do seu braço esquerdo demasiado tostada, por ir sempre à torreira do sol na cabine, pousado em V na janela aberta.

Quando escrevia composições, tinha medo de dar erros ortográficos por causa da régua educadora da Professora Rosário. Hoje não tenho medo, tenho vergonha. Uma pessoa que ganha a vida a escrever não pode dar-se ao luxo de dar erros. É por isso que tenho a Ana, a minha revisora, que se tornou indispensável. Pago-lhe, basicamente, para não passar vergonhas.

Ficar seco e sem ideias para a escrita também é uma temática que abordo com os meus alunos. Dou aulas de escrita e costumo defender que nunca se fica sem nada para escrever. Há sempre alguma estratégia, um estímulo, ou ferramentas que podemos utilizar. E é verdade. Mas esta semana parece que nada funciona comigo. Não tenho vontade, é isso. Perdi o ânimo. Sento-me para escrever e choro. Choro sentada ao computador e sinto-me ridícula. A mulher que chora para o ecrã em branco — um bom título para um filme mau. Choro e sei que nada tem que ver com a escrita ou com o facto de não conseguir escrever. As lágrimas caem torrenciais para cima do teclado porque escrever é uma extensão do meu corpo e da minha alma (não sei se existe, mas queria acreditar que sim), e essa unidade, que sou eu, está triste, como um borrão enorme numa composição perfeita da 3.ª classe.

Não quero contar a razão da minha angústia, e isso nem é relevante, mas, ao contrário de muitos escritores, não faço da tristeza o motor das frases. Sei que sou mais profícua quando o equilíbrio (já nem falo em alegria) me aconchega o corpo, como uma grande e buchuda bóia de praia, e me protege da submersão. Não consigo escrever e, no entanto, escrevi isto. Uma espécie de carta lamurienta que nem parece minha. Também sei que, mesmo que não consiga escrever, hei-de continuar sempre a fazê-lo. Parece um paradoxo, mas não é. Como um atleta. Treinar todos os dias, até suar. Mesmo quando não apetece ou quando se acha que não se é capaz; sobretudo nesses dias. Treinar, treinar muito. O mesmo na escrita. Escrever, continuar a trabalhar, não parar. Mesmo que só se arranquem à cabeça e aos dedos uns míseros parágrafos, e que estes não interessem a ninguém. Estou-me nas tintas se for piroso, eu sei que é — escrevo porque preciso. Porque preciso. Sou um ser humano melhor quando o faço. E até secar por dentro, ainda me faltam litros de suor e de lágrimas que preciso de destilar.

Sugerir correcção
Comentar