O que ela me fez (parte II)

Afonso Reis Cabral será o director por um dia na comemoração do 30.º aniversário do PÚBLICO, no dia 5 de Março. Antecipando a edição especial que está a ser preparada para essa data, desafiámos o escritor a iniciar um conto, que será continuado por outros três escritores nos próximos domingos, na velha tradição do género “cadáver esquisito”. Para continuar o arranque, Reis Cabral escolheu Ana Margarida de Carvalho.

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Lariça ficou-se a olhá-lo, adormecido, ainda de sorriso morno plasmado na cara, mas não se deteve mais do que os instantes necessários para confirmar o que já conhecia. Não era dada a contemplações estéreis. Muitos sorrisos assim, de apaziguamento insípido, lhe haviam passado por camas de ocasião. E corpos novos de sorriso igual não lhe reconciliavam o tédio. Nunca adormecia no túnel do escuro. Pelo menos, desde criança habituou-se a pensar na noite como um túnel. Tranquilizava-a saber que, se o atravessasse, a renovada esperança de continuar viva ressurgia a cada manhã, aí sim, aos primeiros alvores, o sono a apoderar-se dela, a inundá-la como um caldo tépido, que lhe submergia os pés macerados, depois o resto do corpo até lhe cederem as pálpebras. Talvez ficasse então, também ela, com um estúpido sorriso na cara e desagradava-lhe a ideia de não controlar os seus esgares, mesmo enquanto dormia. A avó ensinara-a a domesticar os gestos involuntários do sono, ligava-lhe os dedos das mãos aos dos pés, enlaçava-os a uma madeixa de cabelo e qualquer estremeção despertava-a e mantinha-a vigilante. De noite caminhavam, as duas, a avó puxando-a sempre, sem hesitar, galgando muros, quintais, corpos por sepultar, outros que, agonizantes, lhes agarravam os fiapos das saias, tentando reter nos seus desfalecimentos um pouco da energia daquelas duas, a velha mulher, amontoado de andrajos, puxando a criança, puxando sempre, com um nó no fim dos braços de ambas. Só o ofegar lhe denunciava a exaustão. Não parar nunca, atravessar o túnel da noite, às vezes, o clarão dos bombardeamentos recortavam-lhes os vultos eriçados. Chegaram ao fim do caminho porque não havia mais caminho seco, e nem aí a avó abrandou o passo. Um homem com cheiro a salgado pegou na pequena com olhos de urgência e ganância. Lariça nunca pensou que um nó de carne, de dedos e unhas se desfizesse com tanta facilidade. O que ela me fez. A avó a abandoná-la num barco com outros desconhecidos que sussurravam gritos. Tão sozinha, tão desamparada, tão largada, Lariça sentia-se traída, nem voltou a olhar para a margem, onde um destroço de mulher tentava alçar a palma da mão para a nuca da neta, enfiada num colete, que jamais voltaria a ver. O que avó lhe fez Lariça só compreenderia muitos anos depois, muitos resgates e ainda mais tempestades depois, muitos acolhimentos e ainda mais abandonos depois, muitas casas e ainda mais desabrigos depois, muitas vidas e ainda mais identidades depois. O que ela lhe fez. Esqueceu todas as palavras da língua de infância, esqueceu o rosto da avó, lamentava não ter lançado um olhar do barco que se afastava da margem. Se o tivesse feito, engolindo o seu ressentimento, certamente lembraria a cara da velha mulher na última despedida. Continuava a caminhar de noite, ignorando as mazelas e as bolhas nos pés. De dia convinha-lhe companhia, a melhor maneira de acrescentar mais. Aquele rapaz, como outro qualquer, depressa o esqueceria, nunca ficava muito tempo no mesmo sítio, nem largava pistas, nem rastos nem trilhos, como um índio Sioux a levantar acampamento. Nunca ficar muito tempo no mesmo lugar, ainda menos com o mesmo parceiro. Caminhar, caminhar sempre. Aprendeu, sem grande dificuldade, a corresponder socialmente ao que esperavam dela. O mistério jogava sempre a seu favor. A sua aparência, que naquela Europa chamavam exótica, também. Era-lhe tão fácil a sedução quanto o cálculo. Tão seguro o cálculo quanto a dissimulação. Mas de noite era novamente ela e a avó. A escuridão e a cumplicidade das paredes sombrias bastavam-lhe. Lisboa interessava-a, não pelo que mostrava à superfície, mas pelo que tinha por baixo, camadas e camadas de ruínas, necrópoles, lápides, vestígios dos seus três mil anos de ocupação urbanística contínua. Gostava de imaginar debaixo das suas solas sempre gastas as arquitecturas milenares, templos, termas romanas, tesouros, relíquias, peças raras, esqueletos com mais de sete mil anos. Tal como sepultados na sua memória um caco velho, um mosaico, um osso lascado, uma palavra enterrada, arqueologia do seu passado.

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