O Carnaval de Vila Boa de Ousilhão quer “atrair gente”, mas sem perder a tradição dos diabos chocalheiros

Vila Boa de Ousilhão celebra o Entrudo repetindo uma tradição pagã cujas raízes remontam à era pré-romana. Nas fotografias de Folia, de Egídio Santos, há máscaras de madeira, fogo, fumo, diabos à solta e muito poucos turistas. Por ora.

©Egídio Santos
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Em Vila Boa de Ousilhão, em Trás-os-Montes, longe da mira do turismo de massa, repete-se, esta terça-feira, 25 de Fevereiro, a tradição ancestral associada ao Entrudo. Ainda o sol se ergueu há poucas horas e, ao longe, já se ouvem os chocalhos dos “máscaras” – o nome atribuído pelos aldeãos aos homens vestidos de demónios carnavalescos que se passeiam, festivamente, pelos rústicos caminhos daquela pequena freguesia de Vinhais. Não são “caretos”, corrige o fotógrafo portuense Egídio Santos. Também ele já foi corrigido por quem veste as vestes de lã colorida e as máscaras de madeira por esta altura do ano. Vila Boa de Ousilhão não gosta de ser confundida com Podence, apesar do que as une. São transmontanas, sim; endiabradas, também. Mas cada coisa no seu lugar. Há também, ainda, muito que as diferencia. 

A festa de Vila Boa de Ousilhão mantém a pureza original, o cariz privado. É uma festa dos de dentro para os de dentro — que nunca exclui os de fora. Todos são bem-vindos. Egídio foi acolhido de braços abertos, pela primeira vez, em 2012. E regressou em 2015 e nos quatro anos seguintes. Sente-se, hoje, como um primo afastado de todos aqueles que acompanhou durante as festas. “Já conheço toda a gente”, afiançou o fotógrafo. Não é difícil, eles não são muitos — menos de 200. E quase todos têm direito a um retrato no fotolivro que publicou recentemente, intitulado Folia, cujo conteúdo se encontra, até 22 de Março, em exposição no Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança.

Rasgando o frio que ainda se faz sentir em Fevereiro, a mais de 700 metros de altitude, o grupo de diabos chocalheiros, sempre seguidos do afiado e frenético som das gaitas de foles, faz a ronda pela aldeia. “Entram nas casas e nas adegas, onde comem e bebem sofregamente”, explica o fotógrafo ao P3, em entrevista. Lançam farinha e água sobre a população – que, entretida, consente –, interpelam mulheres e moças com muito vigor e nenhum pudor. Risos e sorrisos de quem observa seguem o som dos chocalhos, num desafio que é mútuo, constante. “Pelo caminho, os ‘máscaras’ roubam objectos e reúnem-nos no local onde, mais tarde, irão acender a fogueira comunitária”, explica o fotógrafo. Um cantil de vinho é passado entre todos os foliões que, bem regados, cantam “De beber, de beber, de beber não posso deixar. É o vinho que alegra a gente, eu fico contente de me emborrachar”.

A pândega, que tem o álcool por combustível, é omnipresente, contagiante. Em redor da “fogueira de dimensões dantescas”, os “máscaras” bailam, gritam, chocalham os pesados chocalhos. Com valentia, atravessam as chamas, como descrevem as imagens do fotojornalista. O fumo adensa-se à medida que as horas vão avançando. “Já no limite das forças”, os “máscaras” deitam-se no chão, bebem mais um pouco, envolvem-se em escaramuças de faz-de-conta e recuperam energia para novas investidas. O estômago é quem dita o final do frenesi pagão. Sopa, enchidos, bifanas, arroz doce e mais vinho aguardam os foliões no jantar comunitário. “Todos são convidados para o festim”, garante Egídio. Mesmo aqueles que, como ele, vêm de fora.

No final do grande manjar, todos escutam, atentamente, o anúncio dos “casamentos” entre os jovens da aldeia. Esse é feito por um grupo de homens a partir de um monte. “Rapazes e raparigas aguardam, com expectativa, escutar o nome do seu par.” É com ele que seguirão para o baile, que tem lugar na Casa do Povo. É noite de liberdade e de libertinagem. “O casal ‘existe’ até à meia-noite, a hora em que se põe termo ao folguedo.” O catolicismo assim o exige, com o anúncio da Quaresma.

Egídio Santos, que conta com 30 anos de carreira na área da fotografia, pensou duas vezes antes de publicar Folia. Conhece bem os riscos da “turistificação” deste tipo de tradições — apontando Podence e Lazarim como exemplos. “Por um lado, os habitantes desejam atrair gente”, justifica. “Querem aumentar a festa, querem que seja vista, reconhecida. Por outro lado, apreciam ainda o calor daquele encontro privado, do facto de não haver tendas de comida, de bebida, de não haver merchandising.” Egídio não gostaria de contribuir directamente para uma mudança no panorama da vila, mas não conseguiu ficar indiferente à autenticidade do Entrudo de Vila Boa de Ousilhão. E nós também não.

Praça central de Vila Boa de Ousilhão, no concelho de Vinhais, Bragança, Trás-os-Montes.
Praça central de Vila Boa de Ousilhão, no concelho de Vinhais, Bragança, Trás-os-Montes. ©Egídio Santos
Os "máscaras" carregam fardos de palha e empilham-nos junto à escola, onde irá nascer uma fogueira
Os "máscaras" carregam fardos de palha e empilham-nos junto à escola, onde irá nascer uma fogueira ©Egídio Santos
As máscaras são esculpidas por um artesão da aldeia.
As máscaras são esculpidas por um artesão da aldeia. ©Egídio Santos
Com vigor e sem pudor, os "máscaras" importunam mulheres e moças de Ousilhão.
Com vigor e sem pudor, os "máscaras" importunam mulheres e moças de Ousilhão. ©Egídio Santos
Os "máscaras" pregam partidas a todos os que se reúnem nas ruas de Ousilhão
Os "máscaras" pregam partidas a todos os que se reúnem nas ruas de Ousilhão ©Egídio Santos
Ou ousilhanenses são alvo de remessas de farinha e de água.
Ou ousilhanenses são alvo de remessas de farinha e de água. ©Egídio Santos
Elas também participam, mas não são conhecidas por "máscaras". Elas são "marafonas" ou "madamas".
Elas também participam, mas não são conhecidas por "máscaras". Elas são "marafonas" ou "madamas". ©Egídio Santos
O fogo faz parte da celebração pagã.
O fogo faz parte da celebração pagã. ©Egídio Santos
"Máscaras" saltam sobre o fogo.
"Máscaras" saltam sobre o fogo. ©Egídio Santos
A grande fogueira é ateada junto à escola primária.
A grande fogueira é ateada junto à escola primária. ©Egídio Santos
"Máscaras" desafiam o fogo.
"Máscaras" desafiam o fogo. ©Egídio Santos
Quando as forças se extinguem, os "máscaras" fazem uma pausa junto ao fogo
Quando as forças se extinguem, os "máscaras" fazem uma pausa junto ao fogo ©Egídio Santos
"Máscara" posa para Egídio Santos, diante da fogueira.
"Máscara" posa para Egídio Santos, diante da fogueira. ©Egídio Santos
As máscaras do Entrudo de Vila Boa de Ousilhão são esculpidas por um artesão local.
As máscaras do Entrudo de Vila Boa de Ousilhão são esculpidas por um artesão local. ©Egídio Santos
Por entre o fumo e o frio de Fevereiro, os máscaras afastam-se do fogo.
Por entre o fumo e o frio de Fevereiro, os máscaras afastam-se do fogo. ©Egídio Santos
Seguem para o jantar comunitário onde, à boa tradição transmontana, não falta a sopa, os enchidos, bifanas, arroz doce e mais vinho
Seguem para o jantar comunitário onde, à boa tradição transmontana, não falta a sopa, os enchidos, bifanas, arroz doce e mais vinho ©Egídio Santos
O vinho é o elixir da coragem dos "máscaras" da Vila Boa de Ousilhão
O vinho é o elixir da coragem dos "máscaras" da Vila Boa de Ousilhão ©Egídio Santos
Na aldeia vivem, hoje, menos de 200 habitantes
Na aldeia vivem, hoje, menos de 200 habitantes ©Egídio Santos