“Maria”, “Pedro”, “Paula”: como os homossexuais resistiram à ditadura salazarista

Homossexualidade “no armário” e resistência passiva. As histórias de dez homossexuais que viveram durante o salazarismo estão no livro “Homossexualidade e Resistência no Estado Novo”, de Raquel Afonso.

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Raquel Afonso DR/CARLA VALONGO

“Maria” casou-se para fugir da aldeia onde nasceu. “Pedro” teve uma namorada a quem nunca deu um beijo. “Paula” inventava namorados e procurou a ajuda de um psiquiatra. “Carlos” achava que a homossexualidade ia passar com o tempo. São pedaços de quatro das dez histórias de vida que a antropóloga Raquel Afonso reúne no livro Homossexualidade e Resistência no Estado Novo, editado no final de 2019, e que retrata uma parte da história da comunidade homossexual que, diz a autora, está muito pouco documentada.

São testemunhos, todos eles anónimos, de pessoas das classes mais baixas, presas numa sociedade profundamente conservadora. São “pessoas que resistiram tão activamente como puderam e tão passivamente quanto lhes era necessário”, como escreve a investigadora e professora de antropologia Paula Godinho no prefácio do livro.

É essa história, e histórias, que Raquel Afonso se compromete a tratar. Porque, como “onde existe poder e opressão também existe resistência”, estas pessoas foram encontrando mecanismos para esconder, e ao mesmo tempo viver, a sua sexualidade, mesmo sob repressão.

Crime e doença: como era vista a homossexualidade

A repressão da homossexualidade não começa – longe disso – com o Estado Novo, que teve início em 1933. No século XIX a sodomia é criminalizada através do Código Penal e, em 1912, já na I República, surge o crime de “prática de vícios contra a natureza”, que engloba a homossexualidade. Na década de 1930 surgem supostos tratamentos para uma suposta doença – só em 1990 a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a homossexualidade uma patologia.

A opressão das pessoas homossexuais foi endurecida durante o regime salazarista. Em 1945, um decreto-lei dá conta de que “a PSP tem que vigiar, entre outras personagens, os ‘homossexuais’”, explica a autora.

Uma das cinco mulheres entrevistadas por Raquel Afonso, “Luísa”, que a autora caracteriza como uma “mulher de um espírito livre enorme, desafiadora, provocadora”, é personagem de uma história de excepção.

“Luísa” assumiu o seu lesbianismo muito cedo. Recusada pela mãe, acaba por viver sozinha desde muito nova.

Se a sua história pode ter sido menos condicionada pelo facto de viver em Moçambique, onde “havia uma certa permissividade”, ainda assim “Luísa” chegou a ser denunciada à Polícia Judiciária. Alguém decidiu escrever uma carta às autoridades dando conta de que “Luísa” era “fressureira”, um sinónimo pejorativo de lésbica. “Luísa” chegou a ser entrevistada por um agente, mas “disse-lhe que não sabia o que é que essa palavra queria dizer e ele acabou por ir embora”, conta Raquel Afonso.

Para a autora, a história de “Luísa” foi possível também porque o lesbianismo era quase um não-assunto. A sexualidade feminina não era falada, independentemente da forma que tomasse. O lesbianismo encontrava também refúgio sob a fachada de amizade: duas raparigas juntas eram duas amigas, quando muito, um excesso de intimidade condescendido como uma extravagância ou desvario.

“Clara”, outra das mulheres entrevistadas pela autora, viveu sete anos com uma namorada. Ninguém, inclusive a sua família, a questionou, e foi apenas quando esta relação terminou que assumiu a sua sexualidade à mãe. A sua companheira era, para o resto do mundo, apenas uma amiga.

“Homossexualidade eram só os homens”, explica “Paula”. “Os homens eram doentes, escorraçados. Em relação às mulheres não deixa de ser curiosa a negação da existência. As mulheres não podiam, estava fora de questão.”

Urinóis públicos e vãos de escada

“Carlos”, um dos cinco homens que falou com Raquel, confessou-lhe que tinha medo da polícia, de ser apanhado “se estivesse a fazer alguma coisa escondida, na rua, com alguma pessoa”.

Os homens arriscavam mais do que as mulheres. Os engates em locais públicos – como urinóis públicos e vãos de escada – tornava-os alvos mais fáceis para a polícia.

“Se tu fosses apanhado com um gajo numa casa de banho ou na rua, ias de cana”, asseverou “Luís”. Aqueles que eram apanhados em flagrante eram enviados para “manicómios criminais, colónias de trabalho ou colónias agrícolas”, onde recebiam uma “reeducação moral, física e profissional”.

Além dos “arrebentas” (civis que se faziam passar por homossexuais para depois exercer chantagem sobre estes), os homossexuais tinham de se preocupar com os polícias à paisana que actuariam como “agentes provocadores”. “José” fala de rumores que se ouviam que davam conta de “indivíduos da PIDE que entravam nos urinóis e se exibiam para que os outros se aproximassem”, para depois os prenderem.

A esperança de Abril e o “comunicado das prostitutas e dos homossexuais”

O 25 de Abril de 1974 trouxe algum optimismo e “dois momentos a assinalar”, refere Raquel Afonso. Um no Porto: no 1 de Maio, alguém afixou um cartaz onde se podia ler “Liberdade para os homossexuais”; outro em Lisboa: no dia 13 de Maio, o Diário de Lisboa publicou nas suas páginas o “Manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais” – ou o “comunicado das prostitutas e dos homossexuais”, como o caracterizou o general Galvão de Melo, membro da Junta da Salvação Nacional.

Apesar destes sinais, Raquel Afonso, aluna de doutoramento em Estudos de Género da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz que resolver o problema da repressão da homossexualidade não era uma prioridade do regime de Abril. “As questões de mentalidades levam décadas, levam gerações a transformar-se”, corrobora “Alice”, uma das testemunhas com quem a autora falou.

Descriminalização e associativismo

É apenas em 1982 que a homossexualidade é descriminalizada e é nessa década que o associativismo começa a florescer no seio da comunidade homossexual, impulsionado pela epidemia da sida e a entrada de Portugal na CEE.

A verdadeira mudança de paradigma acontece, contudo, apenas em 1996, quando é fundada a Associação ILGA Portugal, defende Raquel Afonso, que dá “o mote para o surgimento de muitas outras associações LGBTI”.

As mudanças legislativas começam a surgir já no novo milénio, logo em 2001, com a entrada em vigor da lei que regula as uniões de facto e as define como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.

Nove anos depois, é legalizado o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e em 2016 a lei que regula a adopção é alterada para permitir “a admissibilidade legal de adopção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo”.

Texto editado por Pedro Rios

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