Sair do costume

A vontade de quebrar a rotina conduziu-me até ao quebrar do osso. Apesar das dores, não conseguia parar de ironizar com as circunstâncias. Também nunca tinha andado numa ambulância como paciente. Afinal, estava perante várias experiências inovadoras.

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Mag Rodrigues

Suponho que fazer coisas novas, experimentar, ter vontade de provar, é aquilo que me mantém imprudente e vivo. Falo de coisas simples. Parece fácil mas, a partir de uma certa idade, já não é assim tanto. Depois da adolescência e da fase de jovem adulto, parece que todas as experiências já foram feitas. Mas não, é um equívoco pensar assim. Primeiro, tenho de pensar em coisas fáceis e baratas — entrar à revelia num cemitério à noite, por exemplo. Que mal pode fazer? Aos mortos ninguém incomoda. Saltar o muro de um cemitério depois da meia-noite, percorrer os corredores e iluminar com a lanterna do smartphone os nomes inscritos nas lápides. É certo que vou sentir adrenalina. Tudo com o maior respeito pelos finados, claro está.

Ocorre-me visitar um cemitério à noite, somente porque nunca o fiz, mas também pode ser algo menos transgressor, como dar um mergulho no mar durante o Inverno ou comprar no supermercado uma fruta exótica importada e comê-la dando atenção aos novos sabores. Foi só quando estacionei ao pé do muro do cemitério que pensei que talvez a ideia não fosse assim tão boa. Lera notícias sobre grupos satânicos que tinham por hábito invadir aquele tipo de espaços para praticar os seus rituais. Talvez não fosse mesmo nada bom ir a um cemitério à noite, mas agora já ali estava. Observei a extensão do muro, tentando perceber onde seria mais baixo. Descobri uma área da sebe ligeiramente rebaixada. Dava para subir, se me empoleirasse no poste de electricidade. Olhei em redor — ninguém. Coloquei um pé no pilar, e assim que subi ligeiramente, caí para trás. Não sei como raio fiz aquilo. Nem a um metro de altura estava. Caí desamparado e com o braço esquerdo atrás das costas. Todo o meu peso em cima do braço, que ficou esborrachado entre as minhas costas e o alcatrão. Doía, porra, doía a valer. Não conseguia mexê-lo e as dores eram insuportáveis.

Com a mão direita, saquei o telefone do bolso do casaco. Liguei para o 112. Era praticamente meia-noite e eu estava caído junto ao muro do cemitério, provavelmente com um braço partido. A ambulância demorava e as dores em sentido crescente. Consegui a custo sentar-me, mas sem mexer o braço. Ondas contínuas de choques eléctricos de dor — do cotovelo ao pulso. Ocorreu-me que, até à data, nunca tinha partido nenhum osso. Talvez o meu anseio por experiências novas fosse, literalmente, algo fracturante. A vontade de quebrar a rotina conduziu-me até ao quebrar do osso. Apesar das dores, não conseguia parar de ironizar com as circunstâncias. Também nunca tinha andado numa ambulância como paciente. Afinal, estava perante várias experiências inovadoras.

Enquanto me engessavam o braço, fracturado em dois sítios, desejei voltar à minha rotina e talvez esquecer por completo que existem coisas que nunca vivi nem viverei. Talvez precisasse de algo menos radical, como aprender a falar mandarim ou castelhano. Bom, seja qual for a actividade a escolher para sair do costume, é algo que daqui em diante terei de levar como ao braço, a peito.

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