O espectáculo da morte

Todos os dias morrem pessoas por atropelamentos, pela violência, pela falta de cuidados nos hospitais, pela pobreza, pela solidão e pela velhice.

São mulheres, homens, crianças e adultos que não dão título de jornal ou notícia de televisão mas apenas um número que mais tarde vai alimentar a estatística dos que morrem. A excepção é quando as condições da morte envolvem situações trágicas. Nestes casos o interesse pela notícia da morte é uma matéria que alimenta o espaço mediático e a curiosidade humana.

Com a morte de pessoas célebres e conhecidas do público a coisa muda de figura e é dado ao acontecimento, naturalmente, uma atenção e relevo, nalguns casos bem superiores ao que se lhe deu em vida e alimentando um processo colectivo de dor e de luto.

Nestes, a morte é explorada à exaustão com a justificação do interesse público quando, muitas vezes, o único objectivo é conquistar audiências. Porque em tempos de sociedade do espectáculo nem a morte escapa às regras do mercado. Tudo vira produto a ser exibido, chegando aos limites da divulgação de uma morte nas redes sociais acolher um significativo número de likes num processo mecanizado que nem dá tempo de reflectir sobre o que se está a ser sinalizado como gosto.

Paulo Gonçalves era um desportista excepcional e um homem simples de elevada qualidade cujo exemplo importa destacar e valorizar. Era, na sua modalidade de eleição, o motociclismo, um ídolo. Mas nunca teve, em vida, a exaltação dos seus méritos que, agora, a narrativa celebratória e fúnebre dele discorre.

E o que vale para Paulo Gonçalves vale para todos aqueles, e foram muitos, que agora foram chamados a depor, sobre o desportista e o homem, e que nunca foram convidados a fazê-lo com ele em vida. E se bem o justificava.

A sua terra, a casa onde habitava, a família, tudo agora é motivo de reportagem. E da mobilização de dezenas de câmaras de televisão, de outros tantos profissionais e de um sem número de recursos para lembrar quem partiu. Aparentemente, para perante a morte se descobrir o que antes estava opaco.

A mediatização da morte de figuras públicas mais ou menos conhecidas é, muitas vezes, uma busca do tempo perdido e do reabilitar de personalidades que se foram ausentando, ou não tiveram no espaço público aquela que achamos dever ter sido a justa projecção da sua obra e do seu exemplo. Evocamos essa memória não raras vezes como um exercício apressado de catarse colectiva, pois raros são os casos que resistem à erosão no tempo para perdurar no imaginário colectivo. Precipitam-se declarações, homenagens e cerimónias, descurando até a vontade e o desejo da família enlutada no momento da perda, para logo se encerrar o último, e póstumo capítulo, o funeral…e a vida continuar. Com uma ou outra homenagem e um inevitável topónimo numa qualquer artéria.

Obviamente que o exemplo do Paulo Gonçalves merece tudo quanto possa ser dito e escrito. Mas já o merecia antes. Porque é esta a ordem das coisas?

Porque parece existir nas sociedades actuais uma espécie de pudor em exaltar em vida o que se celebra na morte. Em certo sentido, o choque da morte e a nostalgia da perda mobilizam mais atenções e desencadeiam emoções mais intensas que aquelas que a vida proporcionou.

Mas se assim é, importa que reflictamos se não deveremos olhar para a vida de outro modo e valorizá-la mais, destacar os bons exemplos, antes que a morte inapelavelmente chegue, por razões naturais, ou por ocorrência súbita.

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