O talento dos enganos

Não sei o que aconteceu depois, como gravei ou não o texto, só sei que enviei a versão errada. Até hoje, nunca li o que acabou por sair. Poupei-me a isso.

Um dia aconteceu-me o previsível. Enviei o texto errado para o jornal. Ninguém deu por ela, nem tinha de dar. Não tinha gralhas, não tinha nada de absurdo, era banal. Simplesmente não era a versão certa. São os embaraços da tecnologia. Só dei por ela quando o vi publicado. O susto que foi.

Percebi mal vi o título. Porque foi um dos aspectos que mudei, pus outro, achei o primeiro mau. O mesmo aconteceu com o resto das frases. Na primeira versão, as frases e as ideias pareceram-me quadradas e convencionais. Mudei-as.

Não sei o que aconteceu depois, como gravei ou não o texto, só sei que enviei a versão errada. Até hoje, nunca li o que acabou por sair. Poupei-me a isso.

Houve quem lesse, sabendo da troca e me descansasse:

 – Está muito bem. Não te preocupes. Não há ali nada que te possa envergonhar.

Mas o pior estava para vir. Assim que a crónica foi publicada, comecei a receber emails, mensagens e identificações nas redes sociais: “Que texto bonito”, “gostei muito” e por aí fora. E eu, deste lado da tecnologia, sozinha atrás de um ecrã, a digerir louros por causa de uma crónica errada.

O meu problema com o texto era achá-lo bem-comportado. Mudei-o até sentir que reflectia um ziguezague e não uma linha recta sobre o tema. Apesar disso, lá agradecia os emails, as mensagens e punha corações nas identificações do Facebook. Como explicar que, embora a ideia geral da crónica fosse aquela, havia frases que estavam presas, ou a remar em sentido contrário? Foi um desastre só meu, mais ninguém o sentiu. Ainda bem que gostaram, dizia eu. Mas não era verdade, o que eu via era um laçarote enrolado ao pescoço do meu descuido. Era pior do que um simples tropeção despercebido.

Podia ter-me enganado e enviado um texto que deixasse todos perplexos, a pensar o que me tinha acontecido, onde é que eu andava com a cabeça, mas não. Envio um texto errado que me incomoda porque é demasiado certinho e ainda recebo os parabéns por isso.

Percebi, é claro, que até nos enganos a sorte bafeja os ousados. E não é sorte. É porque uns somos assim e outros não.

Uns vão ser sempre surpreendentes, novos, vão ser sempre umas dores de cabeça. Quando Luiz Pacheco se meteu a traduzir, contra o relógio, parte do Dicionário Filosófico de Voltaire, acordou sobressaltado a meio da noite, lembrando-se que pusera palavrões no lugar de palavras cujo significado não sabia. Conseguiu travar o erro a tempo, mas esqueceu-se de uma nota, na qual se pode ler a referência a umas “deliciosas sandes de merda”. A tradução era assinada por Bruno da Ponte.

Os que somos assim confessamos enganos pequeninos. Porque até nisto das admissões em prosa há os que o fazem em grande. Para meter o pé na poça como deve ser é preciso alegria, desfaçatez. Na crónica O crime (de plágio) perfeito, Rubem Braga conta que, estando a ser pressionado para escrever num semanário, e sem vontade, decidiu pegar em textos de Drummond de Andrade que estavam a sair noutra publicação, com um pseudónimo, e copiá-los, assinando-os com o mesmo pseudónimo. O editor que os recebia ficava todo satisfeito, dizendo que, mesmo com um pseudónimo, o estilo de Rubem Braga era inconfundível.

Hoje, com a Internet, esta história não seria possível. Mas, como em todos os tempos há alguns desalinhados, outras argoladas e confusões nascerão. Para nos encher os dias de erros irrepetíveis, que é como quem diz de histórias únicas.

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