O triunfo do cinismo

Há quem beneficie desta imobilidade, desta ficção colectiva, onde estamos imersos. Vivemos numa espécie de mundo apartado. De um lado os super-ricos. Do outro os remediados, cada vez mais privados dos direitos mais elementares.

Hoje o pensamento dominante é o cinismo. Está em todo o lado. Na boca de políticos, comentaristas, nas estruturas de poder, na opinião pública em geral, seja nas ruas ou nas redes sociais. A confiança num futuro melhor foi substituída pelo temor do que aí virá. Por isso paralisa-se qualquer debate. Muda-se de assunto. Passam o tempo a dizer-nos: o presente não é brilhante, mas é o menos mau possível, até porque o passado foi bem pior. Fala-se ao lado dos verdadeiros problemas. Dissimula-se a realidade.

Quem tente romper esse cordão é de imediato atacado. É rotulado de “messias”, “arrogante” ou “radical” (esta semana tivemos um bom exemplo disso com a visita de Greta Thunberg), mas as possibilidades são inúmeras, numa lógica de pessoalização dos assuntos, onde se tenta retirar credibilidade pela forma e não pelo conteúdo. A ideia é sempre a mesma: desviar a atenção do que realmente importa, com uma avalanche de informações desencontradas ou contraditórias. Isola-se um elemento do que é dito para desacreditar o todo. Diz-se que a pessoa X não tem autoridade ética, nem provém de uma tradição de pensamento que lhe permita dizer Y. Satiriza-se a forma como se comporta. Tenta retirar-se-lhe autenticidade. Moraliza-se as questões e nunca se chega a falar mesmo delas.

Já nem se trata de tentar afirmar alternativas. É apenas aceitar que os problemas gerados pelos modelos sob os quais vivemos nos obrigaria a pensar em novas soluções. Mas não. Há muita gente que não está nem aí. Uns por interesse. Outros por medo. Preferem pensar que os dilemas ambientais, o aquecimento global, a estagnação económica ou as novas formas de exclusão, que exigiriam um sério esforço colectivo para gerar mudanças, ou são questões inexistentes, ou que as soluções podem ser providenciadas de forma localizada, como se não estivesse tudo interligado, com recurso a remendos. Mudar para não mudar.

Aceita-se cinicamente a realidade tal como está. Às vezes até existem transformações com as quais concordaríamos, mas são boas de mais para serem verdade, receamos. Mudar implica sempre tensão. E nem sempre é para melhor. Talvez por isso deixamo-nos afogar na burocratização da existência, num pragmatismo disfarçado de ideologia, que nos conduziu até aqui.

Nem todos se queixam. Há quem beneficie desta imobilidade, desta ficção colectiva, onde estamos imersos. Vivemos numa espécie de mundo apartado. De um lado os super-ricos. Do outro os remediados, cada vez mais privados dos direitos mais elementares. Até os problemas ambientais são experienciados de forma muito diferente. Quem pode continuará a habitar como se estivesse num mundo à parte, protegidos de regulações e de constrangimentos sociais, não estando interessados em questionar modos produtivos que se vão revelando destrutivos.

Aos necessitados estará reservado o papel de se confrontarem com as distopias desse paraíso, lidando com os excessos ambientais ou a fuga dos seus territórios, canalizando o ressentimento para quem está na mesma ou pior, sem perceber que o verdadeiro problema é um sistema económico e político desumano que, cinicamente, dizemos ser impossível transformar.

E aqui estamos. Já só conseguimos fingir acreditar. Como quando dizemos acreditar no Pai Natal para que os nossos filhos também creiam, numa lógica que se vai perpetuando. 

Até quando?

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