Aos 20 anos, a Centésima Página é uma história de resistência cultural

Inaugurada em 26 de Novembro de 1999, a livraria continua a não ceder às tendências mais imediatas do mercado, mesmo quando a sombra da crise paira. Num edifício com uma forte carga histórica, em plena Avenida Central, o cliente pode folhear o livro, mas também beber um café na esplanada, conversar e ver exposições e concertos.

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Quando a porta se abre, o crepitar da chuva na Avenida Central transforma-se num silêncio que impele à contemplação e à pesquisa. As estantes multiplicam-se pelas paredes, com livros a ocupá-las de cima a baixo. A cada passo pelos corredores, exemplares vistosos de arquitectura dão lugar a volumes sobre história e de filosofia. E, é claro, há literatura: portuguesa, mas também estrangeira, escrita na língua original – obras deste ano como Machines Like Me, de Ian McEwan, são facilmente visíveis numa das mesas. Pelo meio, junto à cafetaria, alguns clientes debruçam-se sobre as mesas.

O cenário é cortesia da Centésima Página, livraria de portas abertas para os bracarenses (e não só) desde 26 de Novembro de 1999. “Foram 20 anos que são quase cem, no tempo de hoje. O mundo mudou muito”, confessa Sofia Afonso, uma das responsáveis, numa conversa com o PÚBLICO, envolta pela paleta de cores que irradia da secção infanto-juvenil e pelo vislumbre da chuva a cair sobre o jardim e o mobiliário da esplanada.

A ideia começou a germinar nas mentes de Sofia, de Helena Veloso e de Maria João Lobato (que deixou o projecto em 2016) em meados dos anos 90. Viam em Braga potencial, até pelo historial de “boas livrarias” na cidade, como a Cruz, a Globo, a Minho, a Pax e a Osvaldo Sá, recorda Helena Veloso, ao lado de Sofia. Esse património estava a desaparecer, por “abandono ou morte dos fundadores”, e precipitou o aparecimento de um novo espaço, vocacionado para uma “certa massa crítica”.

A ideia, alimentada pela “paixão pelos livros e pelas actividades culturais que se poderiam desenvolver” em torno deles, refere Sofia, acelerou em 1999, com a elaboração de um projecto de arquitectura que se fez livraria em apenas três meses -  “uma tarefa quase impossível” - num espaço próximo da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica. “Quisemos um espaço em que as pessoas pudessem estar e consultar os livros sem serem interpeladas”.

A Centésima mudou-se para a Casa Rolão, um edifício do século XVIII mais abaixo, na Avenida Central, em 2005, mas a sua razão de ser não, considera Sofia. Esta continua hoje uma livraria independente, especializada desde o começo no livro infanto-juvenil, na banda desenhada, na poesia, mesmo quando alguns editores diziam que “estava morta”, e nas artes (arquitectura e pintura). A literatura escrita em inglês ou alemão é uma aposta recente, face à subida da imigração e do turismo na cidade.

Mas a diferenciação da livraria expressa-se a partir de um suporte “universalista e plural”, com cerca de 30.000 títulos disponíveis, refere Helena. As vendas atingem o pico na semana que antecede o Natal, mas raramente há um livro que sobressaia face aos demais, mesmo quando se vendem êxitos sazonais “mais comerciais”. “Não vendemos grandes quantidades de certos títulos. Vendemos diversidade”, realça.

Remar contra a maré

Empenhada em “valorizar certos nichos” e em “não ceder a tendências facilitistas ou populistas do mercado”, a Centésima Página manteve-se de pé nos últimos 20 anos, superando crises do sector editorial, que mataram livrarias e distribuidoras pelo país a partir de 2005, sensivelmente, e às pressões para a uniformização da oferta de livros. “Tivemos de remar contra a maré durante muitos anos”, recorda Sofia Afonso.

Nessas duas décadas, a livraria foi convivendo com dificuldades financeiras e o fecho foi uma hipótese contemplada, sobretudo após a eclosão da crise financeira de 2008. Além de uma quebra no número de pessoas que circulava pela Casa Rolão, a livraria teve de encarar a sombra do livro digital. “Houve uma grande reunião de editores e distribuidores nos Açores, por volta de 2009. Chegou-se à conclusão que o livro em papel iria acabar”, realça Helena.

Passada uma década, isso não aconteceu, porém. Por volta de 2013, as proprietárias da Centésima notaram um regresso a hábitos passados como o consumo em lojas de rua, que também beneficiou o livro. Isso também aconteceu lá fora, com a Amazon a abrir livrarias físicas. “Porque é que a grande empresa do digital abriu lojas Nova Iorque e em Seattle, por exemplo?”, questiona.

As vendas da Centésima não são hoje muito superiores às da pré-crise, até porque a cultura é o “primeiro sector que apanha a pancada e demora mais a recuperar”, diz Sofia Afonso, mas as dificuldades foram uma aprendizagem para todos os envolvidos na “malha” que se estende do autor ao leitor. “A crise fez com que toda a gente precisasse de toda a gente”, reitera Helena Veloso. “Antes, uma livraria que dizia não querer aquele livro, mas os outros todos, não era compreendida. Agora já é”.

A Centésima continua assim a prosperar. E fá-lo como fruto de uma ideia totalmente feminina. Quando abandonaram as carreiras profissionais para se aventurarem na livraria, nem sequer pensaram nisso, admitem as duas responsáveis. Mas as editoras e as distribuidoras eram, e continuam a ser, um mundo de homens. A presença feminina nas reuniões não chegava sequer à dezena de pessoas. “Não pensávamos muito nisso, mas havia um certo paternalismo, até ao sermos tratadas como as meninas da Centésima Página”, conta Sofia sobre um fenómeno que gradualmente se esbateu.

Mais do que uma livraria

Aquela casa do livro sustenta dez pessoas, incluindo as proprietárias, e é uma daquelas “iniciativas privadas que dá vida a uma cidade”, até por ter uma identidade bem definida no mercado, associado, e muito, aos rostos que a alimentam. “Ter um espaço como este é um acto político”, defende Sofia Afonso.

Esta lente militante pela qual se pode olhar uma pequena empresa como uma livraria é partilhada por Jean Yves Durand, cliente há 20 anos. Sentado numa das mesas da cafetaria a ler, o antropólogo reitera que a família “faz questão de comprar todos os seus livros” naquele “espaço agradável”, como mecanismo de “defesa cidadã daquela forma de comercializar produtos culturais”. “O acolhimento é sempre competente, por gente que lê livros, com quem é possível falar dos livros, que tem opiniões sobre os livros que está a vender”, explica o investigador ligado à Universidade do Minho. 

Para Jean Yves Durand, a Centésima é hoje “referência cultural na cidade e na região” pelos livros de que dispõe, mas também pela animação cultural que oferece. Desde 1999, o trio fundador sempre quis um espaço capaz de acolher exposições de fotografia ou pintura, apresentações de livros ou concertos. Esse desígnio, até agora cumprido, teve seu o capítulo mais recente no passado sábado, com a apresentação do livro Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso, de Alexandra Lucas Coelho, e a performance que juntou António Durães e os Governo, banda formada por Valter Hugo Mãe e dois elementos dos Mão Morta (António Rafael e Miguel Pedro).

A integração de propostas culturais num espaço que vende livros ajudou a Centésima a ser um “espaço de construção de relações” entre clientes. “Creio que fomos uma lufada de ar fresco em Braga, com pessoas a aderirem instantaneamente à livraria”, afirma Helena, reflectindo sobre os 20 anos de um lugar com muitas páginas ainda por escrever.

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