Jornais escolares — os primeiros vencedores

“Era um orgulho quando o jornal saía e eu via o meu nome nos artigos”

Ser jovem é acreditar que tudo é possível. Bem-vindos ao Nova Maré, um jornal feito numa escola secundária do Seixal e recordado, por quem nele esteve envolvido, como tendo sido determinante para o resto da vida.

Furgão compacto
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"Carrinha transportando alunos para venda do "Nova Maré”, publicada no livro dos 50 anos da Secundária Dr. José Afonso DR

Alice Santos aponta com o dedo. “O Al Berto ali, naquele cantinho. Quando chegou, avisou logo: ‘Eu tenho de ficar perto de uma janela, porque eu tenho de fumar’.” Al Berto foi entrevistado na escola, José Afonso em casa, Luís de Sttau Monteiro em Tróia, onde decorriam as gravações da telenovela Chuva na Areia, baseada num romance da sua autoria. Músicos, escritores, jornalistas, figuras do desporto — uma vasta lista de protagonistas de trabalhos publicados, ao longo dos anos, com direito a chamada na primeira página do Nova Maré. A ficha técnica dá conta de uma rede de correspondentes a “cobrir” Paio Pires, a Amora e a Cruz de Pau, Corroios, Fernão Ferro...

O que é isto? Um jornal escolar? Inevitável, a pergunta, quando se começa a folhear a pilha de exemplares, última edição com data de 2005. “Não era um jornalinho de escola, só a falar das coisas da escola. Era um jornal local a partir da escola” — o esclarecimento, útil, é fornecido por Sérgio Contreiras, enquanto pousa mais uns números em cima da mesa à volta da qual estamos sentados.

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A professora Alice Santos, à esquerda na foto, no dia em que foram entregues os prémios do concurso de jornais escolares, em 1992

Os professores Alice Santos e Sérgio Contreiras, hoje ambos aposentados, são dois dos fundadores do Nova Maré, o jornal da então Escola Secundária n.º1 do Seixal (na atualidade, Escola Secundária Dr. José Afonso), vencedor, em 1991-92, da primeira edição do Concurso Nacional de Jornais Escolares promovido pelo PÚBLICO na Escola. A distinção foi atribuída na categoria que compreendia Ensino Preparatório, C+S e Secundário. No grupo que incluía os alunos mais novos ganhou O Pipocas, da Escola do 1.º Ciclo de Benfeita, Arganil. Uma década antes, fazer um jornal fora a solução encontrada por um grupo de professores estagiários (em profissionalização em exercício na secundária do Seixal) para dar resposta às tarefas exigidas em áreas de intervenção que haviam sido introduzidas e que, entre outras coisas, privilegiavam a ligação escola-meio. “Ninguém sabia como pegar nisto, porque era tudo novidade”, explica Alice Santos. “A forma que se encontrou foi fundar um jornal que estabelecesse essa ligação: ir ao meio, saber, conhecer com os alunos, redigir, publicar, etc. Desde o primeiro número há recolha de documentos históricos, mas também há, por exemplo, um grupo que faz a gestão e a contabilidade do jornal, trata dos assinantes, da publicidade...” Os professores de diversas áreas ocupavam os alunos com trabalhos que se lhes adequassem, “era muito curioso”.

É “com esta dinâmica, e também com muita colaboração da gestão da escola, que se empenhou muito neste projeto”, que o Nova Maré arranca e dá os primeiros passos num caminho merecedor de vários prémios e inspirador de outras iniciativas, dentro e fora da escola.

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A emoção de ver o jornal pronto

“Orgulho” é uma das palavras utilizadas por Elisabete Curtinhal, uma das redatoras do Nova Maré em 1991-92, para descrever a emoção vivida no momento em que o jornal saía da gráfica e lhe chegava às mãos, prontinho, e ela ia verificar como tinha ficado, na versão acabada, o material que acompanhara noutras etapas. “Sempre achei engraçado o processo de ver transformado um texto em artigo, já com layout, com as fotografias... Era um orgulho quando o jornal saía e eu via o meu nome nos artigos.”

Técnica superior da Câmara Municipal do Seixal, na área da Cultura, Elisabete Curtinhal associa a passagem pela redação do Nova Maré à sedimentação da curiosidade pelo seu “território”, um interesse que manteve ao longo da vida, incluindo no campo profissional. Licenciou-se em Antropologia e desde os tempos da faculdade trabalhou sempre na zona do Seixal. A experiência jornalística, não tem qualquer dúvida, desempenhou nisso um papel relevante. “O jornal fazia-nos olhar de uma maneira diferente para o que nos rodeava e questionar as coisas. Despertava em nós um olhar mais atento.” Olhando para trás, acha curiosa a forma como os alunos se sentiam responsáveis por todo o processo da feitura do jornal. “Não era ‘está escrito, acabou’. Essa responsabilidade também era muito interessante.”

E prolongava-se até ao momento em que cada edição chegava às mãos dos leitores. Sérgio Contreiras conta: “A venda do jornal era feita pelos miúdos, às dezenas. Às vezes uma turma tinha um ‘furo’, arranjávamos transporte da Câmara e aí iam eles, uma turma inteira com um professor ou dois, deixava-se um grupo aqui, outro grupo além, à volta recolhiam-nos outra vez e pronto, era assim. Andavam nas lojas, nos serviços, nas Finanças...” Iam ao mercado, à entrada e saída dos barcos que cruzavam o Tejo, em direção a Lisboa, às paragens de autocarro.

Cá está ela, “a carrinha da Câmara que nos emprestavam de vez em quando”. Alice Santos aponta agora para uma fotografia publicado no livro comemorativo dos 50 anos da secundária do Seixal, editado em 2017, Fazes parte desta história. E lá está a legenda: “Carrinha transportando alunos para venda do Nova Maré”. Sem o saberem, alguns estariam a ser transportados para bem mais longe, em termos de opções futuras, nessa incursão precoce no mundo jornalístico.

A vida de Vítor Andrade, jornalista do Expresso, mudou no dia de 1983 em que, então adolescente, foi entrevistar José Afonso para o Nova Maré. Isso mesmo fez questão de deixar registado no livro dos 50 anos da escola, nas páginas preenchidas com testemunhos de muitos dos que integraram a redação do jornal escolar: “No meu caso, foi suficiente para me ajudar a destrinçar o caminho daquela que viria a ser a minha trajetória profissional. Foi numa reunião de redação do Nova Maré, com o professor Matos sempre a desinquietar — e com o [ilustrador] Paulo Buchinho a empurrar-me para o compromisso —, que percebi que havia uma coisa chamada jornalismo, desalmadamente entusiasmante. Fui arrastado para uma entrevista com uma pessoa que considerava um mito: José Afonso, num dia cinzento de março de 1983. A partir daí tudo mudou.”

Ainda hoje Vítor Andrade, 54 anos, se emociona quando evoca esses dias, “decisivos para nos ajudar a definir um caminho para o futuro”. José Afonso recebeu em casa a equipa do Nova Maré, pouco tempo depois daquele que acabaria por ser um dos seus últimos concertos, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em janeiro de 1983. Até isso, o facto de ser “em casa dele”, agigantou ainda mais o momento.

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Muitos anos passaram. O jornalista do Expresso frequentou, aliás, a escola e o jornal do Seixal numa época anterior ao início do concurso do PÚBLICO na Escola, mas nem por isso deixa de continuar a ser com um resquício de estupefação que pensa na disponibilidade de todas aquelas pessoas para acolher os pedidos dos jovens repórteres, reservar tempo, recebê-los, responder às suas perguntas. “Continuo a ficar pasmado com a abertura que as pessoas manifestavam em relação àquilo. Éramos uns miúdos!”

É possível resumir o que de principal se retira de uma experiência destas, de um jornal escolar assim? “Autonomia” é a primeira palavra que ocorre a Alice Santos. “Acho que os alunos fizeram muito caminho na construção da sua autonomia. Uma outra coisa que pode ter ficado é espírito de equipa. Eles trabalhavam as coisas em conjunto, uns com os outros e connosco, tudo era decidido em equipa, fazia-se uma reunião, quase uma reunião de redação, quais iam ser os grandes temas, quem ia entrevistar quem. São experiências para a vida.”

Sérgio Contreiras sublinha “a experiência de socialização, de uma forma geral, com a zona; os alunos podem estar numa escola e não desenvolver muito essa socialização, o abrir horizontes, o relacionar-se com outros”.

Para tudo isto era determinante, concordam os dois professores, a liberdade de movimentos de que os estudantes gozavam, indissociável da aventura e do modo de funcionamento do Nova Maré. “Queriam sempre falar com os que estavam aí ‘a dar’. ‘Vamos entrevistar este, era giro entrevistar aquele!’. Lá iam e tentavam. Ou estavam num sítio qualquer, viam alguém que lhes interessava e ‘sacavam’ uma entrevista. Chegavam já com as coisas alinhavadas, digamos assim, e depois fazíamos cá ‘o corte e costura’ com eles, a correção... O primeiro trabalho era cortar, cortar, cortar; depois costurar o texto. É óbvio que isto, em termos do seu conhecimento da língua, é estruturante, porque é mesmo um trabalho sobre texto”, lembra Alice Santos.

“Tenho a ideia que também lhes deu uma experiência de como reagir face a situações novas, de adaptação a situações novas.” Como exemplo, escolhe a entrevista a Sttau Monteiro. “Eu fui com eles”, a Tróia. “Explicou-se ao que íamos, mostrámos exemplares do jornal, um dos miúdos perguntou:
— Posso começar então a fazer as perguntas?
— Pode, sim senhor.
O miúdo ligou o gravador...
— Quem é que o autorizou a gravar aquilo que eu digo?!!!
Mas assim nestes termos. O miúdo ficou ‘arrelampado’ a olhar para ele.
— Ai, peço imensa desculpa, mas como perguntei se podia começar...
Foi uma experiência inesquecível.”

A crispação diluiu-se, a entrevista seguiu o seu curso. Quem se juntasse ao pequeno grupo já ao final da tarde jamais suspeitaria do início atribulado. Sttau Monteiro convidou, aliás, os repórteres para jantar, fazia-se um esparguete à bolonhesa, e chegou mesmo a sugerir que ficassem para o dia seguinte, para poderem assistir às gravações logo de madrugada.

Mas a opção foi regressar ao Seixal, numa corrida para apanhar o último barco para Setúbal, onde a professora tinha deixado o carro. A equipa redatorial do Nova Maré teve direito a um farnel, que o escritor fez questão que lhes fosse providenciado: “Um pão, um queijo, uma faca (andou a faca do Sttau Monteiro muito tempo pela sede do Nova Maré) e uma garrafa de vinho.”

Também essa entrevista a Sttau Monteiro é co-assinada por Vítor Andrade. Começa assim:
“ — Porquê esta opção, nesta altura da sua vida profissional?
— Eu não fiz opção nenhuma. A televisão convidou-me e eu aceitei. A opção foi da televisão.
— Consta que há grandes diferenças entre a versão televisiva e a obra original [o romance Agarra o Verão, Guida, agarra o Verão], tanto no que respeita ao tratamento das personagens, como à estrutura literária. É verdade?
— Apesar do que consta, é verdade. Normalmente o que consta é mentira.
— Porque é que existem essas diferenças?
— Para explicar isto, levava duas páginas do vosso jornal e duas horas da minha vida. Nem eu tenho esse tempo, nem vocês têm espaço no vosso jornal para o fazerem.”