Teleassistência: o botão de emergência que espanta a dor e a solidão

Há dez anos a aproximar e a socorrer, a teleassistência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é um botão de emergência para os mais sós e o exemplo para uma sociedade mais solidária.

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Todas as noites toca um telefone em Lisboa. É como se fosse na lua, tão distantes parecem os mundos da solidão e do amparo. “Sou eu, sou eu a marcar o número automático”, versa o poema de José Gomes Ferreira. Não é preciso aceder ao código dos astros nem hastear “bandeiras de pele humana”. A linha telefónica é um caminho de raiz, uma máquina, de parca tecnologia, criada para afastar fantasmas.

“Está lá?” Uma idosa, 90 e poucos anos contados, mas ainda “lúcida e organizada”, leva uma colher de sopa à boca. Leva a segunda, e a terceira vem a custo. É o telefone que se ouve depois. Do outro lado da linha, uma voz doce torna-se faca a entrecortar o silêncio. A resistência inicial dá lugar à confiança. "A operadora de teleassistência activa o apoio junto dos serviços de emergência, e, quando chegados a casa da utente, já esta se encontrava com sinais de princípio de AVC.”

Depois, o tempo dá com a mesma generosidade. A noite está salva, a urgência da vida é outra. A gratidão. "A utente ligou para o serviço e para o Contact Center para agradecer todo o apoio e insistência da operadora no reencaminhamento da chamada para os serviços de emergência, afirmando que foi graças a este apoio que foi salva e recuperou”, conta Etelvina Ferreira, responsável pela Direcção do Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).

Etelvina Ferreira envolveu-se no projecto de teleassistência da SCML em 2012, já a iniciativa soprava as velas dos três anos. Assistente social de profissão, acredita na causa do combate à solidão e ao isolamento, sobretudo dos idosos “sem retaguarda familiar”, que, muitas vezes, apenas recebiam visitas da “ajudante familiar”. O apoio nasceu da semente que germinava no terreno crescente da população idosa e da sua vulnerabilidade.

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Ser pára-quedas no silêncio

“Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio e vinde salvar-nos!” Assim escreveu José Gomes Ferreira. Assim cumpre a Santa Casa, que vê neste serviço gratuito de teleassistência uma forma célere de “accionar os meios de emergência necessários: PSP, INEM, bombeiros e Protecção Civil”, conforme conta a representante do projecto. O serviço, que já atendeu mais de mil pessoas e 601 só em 2019, entre utentes da SAD e do centro de dia, possibilita ainda que, “através de um fio ou de uma pulseira, se possa pedir ajuda”.

As linhas são também laços invisíveis. Decoram-se os nomes, as vozes que constituem uma nova morada, e desenvolve-se a familiaridade das conversas diárias. “Os operadores são muitas vezes conhecedores das pequenas rotinas que estes idosos têm, de como gostam de ser tratados, dos diminutivos pelos quais gostam de ser chamados”, esclarece Etelvina Ferreira, sobre esta relação “de confiança”.

A rede de suporte é, além de afectuosa, tecnicamente habilitada. “Actualmente os operadores de teleassistência são, na sua maioria, técnicos superiores, essencialmente com formação na área das ciências sociais, e, dada a sua formação académica, encontram-se capacitados para perceber algumas necessidades, identificadas ou não pelos utentes. Muitas vezes os técnicos, que já trabalharam no terreno, conhecem as vivências de muitos utentes, o que facilita muito o trabalho em possíveis intervenções que seja necessário agilizar.”

É só carregar no botão de emergência e a resposta apresenta-se do outro lado. Também “funciona nos casos de solidão em que o próprio utente liga para o Contact Center apenas para conversar com o operador e, assim, sentir-se mais acompanhado”, destaca Etelvina Ferreira. “Este serviço pode servir igualmente para que o utente solicite a ajuda da agente de geriatria que, antes de iniciar o apoio, lhe possa realizar alguma compra específica, e, através da teleassistência, solicite ao gestor de processo esse mesmo apoio. Temos inúmeras situações em que de facto o serviço de teleassistência se constituiu como uma mais-valia para quem está em casa dependente de cuidados de terceiros.”

Conhecer é a melhor forma de ajudar, e até a família pode ser envolvida no processo. "O gestor de caso do utente pode accionar a rede de suporte familiar e/ou social (quando existe) de forma a dar conhecimento das ocorrências.” E esta natureza de cuidados vem dos genes da casa-mãe. “Vivemos cada vez mais numa sociedade em que cada um olha mais para si e menos para o outro. Nós, técnicos da Santa Casa, somos formatados a tentar contrariar essa premissa.”

A linha de apoio delimita a solidão, e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa quer que esta continue a ser onde acabam as paredes frias e começam as salas de estar quentes das palavras. “Feliz aniversário, dona Alice”, diz-se, numa voz que sorri. E ao “está lá?”, a resposta sempre positiva. “Boa noite, dona Alice.” A noite é um novo lugar inaugurado pela partilha, ignorado por fantasmas.