Arquitectura fora do sítio

Somos capazes de sair do nosso conforto para viajar, cruzar continentes inteiros se necessário, e visitar construções atípicas em que quase tudo está fora do sítio onde “supostamente” deveria estar. Depois voltamos ao nosso quotidiano, às nossas casas, e amolecemos.

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Convento do Carmo, em Lisboa Fábio Augusto

Gera-se sempre alguma tensão quando as coisas estão fora do sítio onde esperamos que estejam. O ser humano tem uma predisposição natural para ordenar e sistematizar. Organizar o desorganizado, normalizar o anormal. As coisas fora do sítio não são amigas do desempenho, consistência e previsibilidade que a sociedade procura. O reverso da medalha é essa mesma previsibilidade, a monotonia e, paradoxalmente, a desumanização que essa tendência humana acaba por causar.

Na arquitectura é particularmente interessante a tensão que se gera quando as coisas estão fora do sítio. Provavelmente recordamo-nos de quase todas as construções insólitas com que nos cruzamos ao longo da vida. Uma casa anónima à beira da estrada com uma porta no primeiro piso para o vazio, um micro-apartamento resolvido em dez metros quadrados onde janta um grupo de oito amigos, edifícios inacreditavelmente estreitos ou um urinol com uma janela por cima para uma impressionante vista panorâmica.

Um relvado nas traseiras de uma moradia não tem especial interesse, mas se estiver “entalado” num pátio ganha uma força extraordinária, como no claustro do Camposanto de Pisa, em Itália. Um reservatório de água, se estiver no fundo de uma enorme pirâmide invertida, enterrada no solo, com um intrincado jogo de escadarias Escherianas, como nos Baolis que encontramos pela Índia, torna-se algo incrível. Uma igreja gótica sem telhado, como o Convento do Carmo em Lisboa, causa-nos emoções complexas. E uma árvore no topo de uma torre de tijolo, como em Lucca, também em Itália? Ou, ainda, os mosteiros em Meteora, Grécia, coroando vertiginosos maciços rochosos?

Somos capazes de sair do nosso conforto para viajar, cruzar continentes inteiros se necessário, e visitar construções atípicas em que quase tudo está fora do sítio onde “supostamente” deveria estar. Depois voltamos ao nosso quotidiano, às nossas casas, e amolecemos. Fechamo-nos em edifícios previsíveis, tristes e que, invariavelmente, nem sequer são funcionais.

O apartamento médio de qualquer português médio tem compartimentos com janelas de pouco mais de um metro quadrado, independentemente de estarem viradas a Sul, a Norte ou a poente. A legislação que pretendia estabelecer mínimos acabou transformada num guião de mínimos-máximos levando a uma total normalização das construções em geral e das habitações em particular. Átrio de entrada com uma sala em frente, uma cozinha estreita com 1,70 metros de largura de um lado, corredor para os quartos com 1,10 metros do outro. Qual alegoria da caverna, não questionamos o porquê de, aparentemente, não poder haver outras possibilidades de habitar para além da torrente de apartamentos mais ou menos iguais que conhecemos.

É então que visitamos uma qualquer habitação num prédio pombalino ou num armazém industrial reconvertido e sentimos que há muito mais mundo e possibilidades. Um pé-direito com mais de três metros parece uma extravagância inalcançável, uma janela com mais de três metros quadrados, puro luxo, a estrutura deixada em bruto, com os perfis metálicos ou pilares de betão à vista, um prazer proibido. De facto precisamos de mais arquitectura fora do sítio, de coisas tão simples como uma porta de um quarto com 2,40 metros de altura, uma passagem estreita com 60 centímetros de largura ou, apenas, entrar em casa pela biblioteca, no meio dos livros.

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