A parvoíce dos valores

O que parece ser merecedor de reflexão e de perplexidade é a crescente e generalizada assimilação ao conceito de “parvo”, de alguns daqueles que devem ser valores basilares e estruturantes da vida em sociedade.

De acordo com o dicionário da língua portuguesa, o adjectivo “parvo”, derivado do latim parvulo, qualifica o sujeito pouco inteligente, insignificante ou pequeno. Utilizado como substantivo, o vocábulo designa um indivíduo que revela falta de inteligência e de bom senso ou alguém cujo comportamento pode ser considerado desagradável ou irritante*.

O que parece ser merecedor de reflexão e de perplexidade é a crescente e generalizada assimilação ao conceito de “parvo”, de alguns daqueles que devem ser valores basilares e estruturantes da vida em sociedade ou, mais precisamente, da nossa vida com os outros.

Valores que são basilares e estruturantes porque são aqueles que nos permitem sentir com o outro, partilhar com o outro, aprender com o outro e, sobretudo, respeitá-lo na sua diferença e na sua identidade única e irrepetível. E, nessa medida, nessa exacta medida, sermos respeitados, nas nossas próprias diferenças e na nossa própria irrepetibilidade.

E penso, concretamente, em dois valores que, progressivamente (e não subitamente, como poderemos ser tentados a pensar, por facilitismo e auto-desculpabilização), foram sendo desqualificados, desvalorizados, investidos de conotação negativa e, finalmente, convertidos em sinónimos de parvoíce, isto é, de atitudes próprias dos parvos.

O primeiro desses valores é o valor da humildade. A humildade representa uma condição fundamental para a vida em comunidade, pois é na humildade que encontramos a razão fundamental para a nossa vontade e capacidade de abertura ao outro, reconhecendo o seu valor e compreendendo-o no sentido mais pleno, aquele que nos obriga a sair do conforto do nosso território e a entrar nesse grande e sempre misterioso desafio, que é o território da individualidade alheia.

E, no entanto, é neste passo, impulsionado pela humildade, que concretizamos a nossa essência gregária, de criaturas que se realizam e completam por viverem em sociedade.

Sucede, todavia, que falar em humildade ou apelar à humildade, nos dias que correm, tende a ser percebido como um apelo à subserviência, à submissão, à desvalorização própria, que terá como óbvio correlato o reconhecimento da supremacia alheia.

Ora, nesta lógica simplista e perversa, a submissão, a auto-desvalorização e a subserviência, adoptadas de “motu proprio”, mais não podem ser do que evidentes sinais de parvoíce.

Ser humilde torna-se, em última instância, ser parvo; ser fraco; ser insignificante; ser suficientemente néscio para deixar penetrar a fortaleza do “eu”, pela intrusiva e abusiva invasão do “outro"; ser suficientemente tolo para ceder na habitual intransigência das vontades próprias, abrindo, nessa cedência, caminho para o domínio da vontade dos outros; ou ser suficientemente insignificante para achar que o outro (os outros), ao invés de nos enfraquecerem, nos fortalecem e que, ao invés de nos desvalorizarem, nos tornam mais ricos…

O segundo valor é o da candura ou da ingenuidade, isto é da vontade, disponibilidade e capacidade de confiar e acreditar no outro, de estar disposto a aprender com ele, ou até, no limite, a conceder-lhe, simplesmente, o benefício da dúvida.

Porque, afinal, é também nisto que se sustenta a vida em sociedade, numa sociedade verdadeiramente livre, que não se barrique nos guetos da desconfiança, da suspeição e do cinismo.

A ingenuidade, enquanto valor, converteu-se em parvoíce e aquele que se predispõe a confiar é, simplesmente, um papalvo, um idiota, inevitavelmente condenado a ser (e bem) enganado por todos…

É triste e interpela-nos este “actual” entendimento de valores humanistas fundamentais. É inquietante nos cenários que pode prenunciar, em que esta espécie de parvoíce dos valores, abre caminho a um novo e crescente valor da parvoíce.

E é perturbador nas dúvidas que nos coloca, acerca do modo como vamos educar os nossos filhos: porque os queremos humildes, ou seja, capazes de aceitar, respeitar e ceder; porque os queremos cândidos, ou seja, capazes de acreditar, de aprender, de se maravilhar e de, com isso e por isso, ser felizes. A questão é que, com boa probabilidade, o preço a pagar será colar-lhes (e colarmo-nos) nas costas o epíteto de parvos. Convenhamos que não é fácil...

1* parvo in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2019. [consult. 2019-10-09 11:50:44]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/parvo

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