Escolhas individuais sustentáveis, uma falácia?

O famoso sloganthink global act local” precisa certamente de uma atualização, talvez algo do género: para problemas locais soluções locais, mas para problemas globais, soluções globais.

O PÚBLICO tem publicado um excelente “dossier” sobre a Crise Climática, com entrevistas e artigos de qualidade. Uma das questões debatidas é saber até que ponto a alteração de comportamento individual é relevante para a solução de problemas globais, como as alterações climáticas. Por outras palavras, manter-se-á válido o famoso “think global act local”?

É inquestionável que um comportamento individual adequado é essencial para os problemas locais e regionais. Por exemplo, é impossível ter elevadas taxas de reciclagem de resíduos urbanos, com qualidade, sem a participação ativa e empenhada do cidadão – e há muito que fazer nessa área em Portugal. Mas, infelizmente, dada a magnitude dos problemas globais, é claro que a ação individual é insuficiente, e por vezes apenas marginal, para a solução dos problemas globais (Naomi Klein, The Guardian/PÚBLICO, 17/09/2019), por dois motivos fundamentais. Primeiro: a magnitude dos problemas não nos dá tempo a que uma significativa fração da população do Mundo altere as suas escolhas, de modo a que isso tenha efeito notório nos problemas globais – notar que a Europa, onde é forte a dinâmica de alteração comportamental, representa apenas 8% da população do Mundo; segundo: o crescimento futuro do consumo de recursos dar-se-á, sobretudo, em África e na Ásia onde, nalguns casos, é risível apelar a algumas alterações de comportamentos – como é que se vai explicar a vastas populações desses continentes que devem andar menos de automóvel e comer menos carne de criação intensiva, quando parte significativa dessas populações nunca teve automóvel e a sua dieta raramente inclui carne? (vide a excelente entrevista de Sunita Narain a Alexandra Prado Coelho em PÚBLICO, 23/09/2019).

Talvez seja isso que os recentes movimentos juvenis perceberam, quando hoje apelam a alterações nas políticas globais.

Escolhas e comportamentos individuais adequados mantêm-se essenciais à micro e à meso escala (gestão de resíduos, mobilidade e qualidade de vida nas cidades, por exemplo), mas à escala global precisa-se de novas e corajosas políticas globais. Tomando ainda o exemplo dos resíduos urbanos, um estudo recente do Banco Mundial (What a waste 2.0) mostra que, em 2016, o Mundo produziu mais de dois mil milhões de toneladas de resíduos urbanos, dos quais apenas 30% foram valorizados (13,5% reciclados, 11% em valorização energética e 5,5% em compostagem), os restantes 70% não tiveram qualquer valorização, foram simplesmente eliminados no solo (33% para lixeiras sem qualquer controlo), sendo responsáveis pela emissão de 1,6 mil milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano (23 vezes as emissões totais de Portugal!).

Um problema desta magnitude não é compatível com apelos à alteração de comportamento do cidadão, nem com visões do tipo “zero waste”, por muito simpáticas que possam parecer. Um problema desta magnitude exige políticas globais inteligentes e ambiciosas, nomeadamente: o fim do dumping ambiental associado à exportação de resíduos dos países ricos para os países pobres, a generalização da recolha higiénica de resíduos – apenas 39% dos resíduos são recolhidos, nos países de baixo rendimento (WB, 2018) –, o encerramento urgente das mega-lixeiras nos países pobres, em simultâneo com a criação de destinos finais adequados para os resíduos, particularmente estruturas de reciclagem de qualidade e desenvolvimento de unidades de valorização energética de resíduos, que permitam encerrar as lixeiras e produzir energia que substitua a produção de energia com combustíveis fósseis.

Este é apenas um de vários problemas ambientais relevantes, onde uma ação política global e determinada pode fazer a diferença, ao contrário de minudências ambientais, que tantas vezes se eternizam no debate público.

O famoso slogan “think global act local” precisa certamente de uma atualização, talvez algo do género: para problemas locais soluções locais, mas para problemas globais, soluções globais.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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