Gente sem casa e casas sem gente

Ao Estado cabe garantir quartos e apartamentos a preço acessível para que nenhum jovem fique de fora por não conseguir fazer face ao custo da habitação.

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Nelson Garrido

Quando observamos a realidade pela lente do mercado, não nos é possível ver a realidade como ela é — e ela é dura e complexa. Quando nos abstraímos dos números e das estatísticas, dando corpo e nome aos milhares de famílias que não têm dinheiro para arrendar um quarto para que os filhos possam ir para a universidade, confrontamo-nos com uma lógica perversa no mercado da habitação: pessoas sem casa e casas sem pessoas. O problema é transversal a todas as faixas etárias e a todas as realidades, mas há numa em que é gritante: o arrendamento universitário.

Entrei para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 2012, as propinas fixavam-se nos 1065 euros e o arrendamento de quartos já não era barato. Hoje, apesar das propinas terem sofrido uma importante descida, não é passível aliviar, de facto, as bolsas das famílias porque a vida ficou mais cara. É praticamente impossível arrendar quartos ou pequenos apartamentos pelo preço de 2012. Aliás, apesar da procura se ter mantido estável em Coimbra, o preço das casas subiu sem quê nem porquê.

Para melhor compreendermos esta crise no mercado de arrendamento na perspectiva do arrendatário temos, necessariamente, de falar na fraca oferta ao nível das residências universitárias. No tempo de Passos Coelho, as residências que não eram muitas passaram a ser ainda menos. Fruto de um crónico subfinanciamento do Ensino Superior, levado a cabo pelos sucessivos governos, as universidades não dispõem de uma oferta digna de habitação universitária. Em Coimbra, é incontornável o caso da Residência da Alegria, que durante muitos anos, alojou estudantes ostentando buracos nas paredes, cogumelos a crescer nos parapeitos, janelas partidas e sem aquecimento. Essa situação foi parcialmente resolvida pela compra do edifício pela Universidade de Coimbra.

No entanto, às residências universitárias apenas os mais carenciados podem ter acesso. Se é verdade que o princípio está correcto, nada impede o Estado de garantir habitação a todos os estudantes deslocados que assim o queiram. É que enquanto o Estado não toma medidas, os privados, os fundos imobiliários e os grandes proprietários vão aproveitando a bolha no sector para cobrar mais e mais por quartos sem condições para acolher estudantes. Parece existir a ideia de que os estudantes se encaixam em qualquer casa, esquecendo que as pessoas têm direito a uma habitação digna, e os estudantes não são diferentes.

Enquanto as residências públicas em Coimbra têm um frigorifico para servir um andar inteiro, encontra-se em construção na baixa da cidade uma residência universitária privada e de luxo. Apenas os abastados poderão a ela ter acesso e, com isso, partir na frente de todos os outros no início dessa fase da vida. Não podemos olvidar que o rendimento disponível das famílias portuguesas, em média, é muito baixo, sendo que o salário médio em Portugal se fica pelos 750 euros. Um quarto, por mais pequeno e velho que seja, em Coimbra, ficará sempre por um preço irrisório à luz do princípio da proporcionalidade, que claramente não se aplica ao mercado imobiliário.

A crise na habitação é profunda e teve um grande escalar de gravidade com a malfadada lei de arrendamento de Assunção Cristas, que pôs em causa, inclusive, a sobrevivência de repúblicas de estudantes quase centenárias. As rendas dispararam e as bolsas de estudo não acompanharam todas estas variáveis. As bolsas de estudo atribuídas em Portugal são residuais nas suas duas vertentes: no valor que é atribuído e no número de estudantes que delas podem usufruir, não logrando aquele que é o seu primordial objectivo, permitir a todos o acesso ao ensino superior.

Este acesso passa também pela possibilidade de pagar um quarto, sem o qual é impossível aos estudantes, que na sua maioria são deslocados, frequentar o ensino superior.

Ao Estado cabe garantir quartos e apartamentos a preço acessível para que nenhum jovem fique de fora por não conseguir fazer face ao custo da habitação. Aliás, são muitos os que abandonam por não conseguirem pagar as propinas, a casa, a comida e as despesas. Se em vez da carne de vaca retirassem o elitismo do ensino superior, o futuro seria mais próspero.

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