A avó triste, as vinganças e a luz nas ruas de A-da-Beja – ou como o povo se serviu da PIDE

Estudo de investigador do ICS revela cartas de denúncia e pedidos à polícia política do Estado Novo. Inveja, vingança, pobreza, “maus costumes”, clientelismo e até vigarice – razões não faltam.

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Arquivo PIDE/DGS – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
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Arquivo PIDE/DGS – Arquivo Nacional da Torre do Tombo
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Duncan Simpson é investigador do ICS Daniel Rocha
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Duncan Simpson é investigador do ICS Daniel Rocha

Situada numa colina alta e soalheira, A-da-Beja tem vista desafogada que abarca parte do estuário do Tejo e as serras de Monsanto e de Sintra; nos anos sessenta ainda pertencia ao concelho de Sintra e ali, uma zona pobre nas franjas da capital, vivia-se sobretudo da agricultura de subsistência e da criação de animais. A aldeia foi crescendo, mas a promessa de ter iluminação pública não era cumprida. Quando um oficial da PIDE ali arrendou casa para os fins-de-semana e férias (como era  costume nas zonas de Caneças, Queluz, Belas, Sintra), a população terá visto nele o meio para conseguir luz nas ruas. Não se sabe se conheciam de facto a profissão de António Faria Pais ou se apenas que era “um senhor” com acesso ao poder de Lisboa. Mas o pedido fez o seu caminho: Faria Pais escreveu ao inspector superior Agostinho Barbieri Cardoso, muito próximo de Salazar, que levou o assunto ao presidente do Conselho, em cujo arquivo está a carta do oficial. Em menos de um mês a secretaria de Estado da Indústria respondia a Faria Pais que o pedido seria “atendido” nesse ano.

Esta é apenas uma das histórias perceptíveis a partir da centena de cartas consultadas nos arquivos da PIDE e de Salazar, pelo investigador Duncan Simpson, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O projecto de investigação de Duncan, financiado pela Comissão Europeia através de uma Bolsa Marie Curie, é estudar a “relação de baixo para cima entre a população e a PIDE” na última década do Estado Novo, segundo descreve ao PÚBLICO. Não se trata da interacção entre a polícia política e os opositores ao regime, os que foram perseguidos ou presos; também não envolve os informadores ou colaboradores formais. É, sim, sobre como cidadãos sem qualquer vínculo ou relação com o regime, se dirigiram à sua estrutura política ou policial através de cartas de denúncia, de comportamentos alegadamente anti-regime e de pedidos diversos.

O Estado Novo instaurou um ambiente de medo mas “a larga maioria da população não foi alvo de perseguição nem fez oposição ao regime”, descreve Duncan, que classifica esta larga fatia como os “portugueses comuns”. E a sua relação com o regime é “multifacetada”, acrescenta, e não apenas de “vítimas passivas”.

O exercício pode levar a mal-entendidos, admite Duncan, que  garante: “Não quero, de forma alguma, minimizar ou branquear a acção da PIDE.” “É importante manter a memória da perseguição, da repressão, da violência. Porém, há uma zona cinzenta de inter-relação entre a sociedade e a polícia política que está pouco estudada e que é essencial para perceber o papel da PIDE na manutenção da durabilidade do regime.”. E insiste: “A normalização do quadro institucional do regime e da sua forma de actuar contribuiu decisivamente para que este se mantivesse tantos anos.”

Em 1951, já o ministro do Interior, Trigo de Negreiros, que tutelava a PIDE, se queixava da quantidade de cartas de denúncia. Cada caso era registado e investigado pela PIDE, originando um processo. Em boa parte é possível perceber a conclusão.
Actualmente, essas cartas estão dispersas por vários arquivos e anexas a ficheiros pessoais e colectivos, mas sem estar sistematizada – ou seja, não há arquivos que as agreguem. A partir de cerca de cem cartas que encontrou no arquivo 219, no arquivo do presidente do Conselho e no registo de correspondência do Ministério do Interior – e apenas em poucas semanas de consulta –, o investigador identificou “quatro formas de relacionamento e interacções espontâneas”.

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