Uma espécie de liberdade amansada

Talvez a liberdade, aquela verdadeiramente livre, tenha, em tempos, passado por aqui...

Estes são os tempos em que nos dizemos livres: de pensar, de dizer, de fazer, de gostar, de ir ou de ficar, de amar, de dizer sim e de dizer não, de sermos nós mesmos, genuínos e, expressão muito em voga, sem filtro.

Dizemo-lo porque disso nos convencem, desde que nascemos ou, porventura, ainda no ventre materno.

E crescemos a acreditar nessa liberdade, que será, no fundo, a total possibilidade de concretização do “Eu”.

Da concretização de todos os “Eus” que podemos ir compondo ao longo da nossa vida.

“Eus” permanentemente actualizados e atualizáveis, ao sabor das modas dominantes, ao sabor das ideias e da linguagem politicamente correctas e, daí, subrepticiamente, ao sabor do medo.

E o medo é, em si mesmo, a própria negação da liberdade.

E não me refiro a esses medos óbvios, o das guerras e das ocupações. Nem tão pouco a esses outros medos, igualmente mortíferos, o da miséria, o da fome ou o da escravidão.

E, contudo, importa relembrar que todos estes medos são bem reais e próximos de nós, não se circunscrevendo às geografias remotas de que falam os noticiários televisivos, devidamente explicadas, as especificidades dessas geografias, por académicos especialistas que, na maioria das vezes, jamais cruzaram as suas longínquas fronteiras e que sobre elas conhecem, apenas, as confortáveis certezas teóricas, explanadas nas salas com ar condicionado, de relevantíssimos congressos científicos internacionais (aliás, o mesmo se aplicando aos outros medos, os mais próximos, dado que as fronteiras que realmente contam são mais vivenciais do que geográficas...).

Refiro-me, então, a um outro medo, que é o medo dessa terrível peste hodierna que é a desconformidade.

Desenvolvemos o medo de ser desconformes!

De sermos desconformes no vestuário ou na pose, como adolescentes inseguros que querem, em desespero, integrar-se na tribo.

De sermos desconformes na idade ou na aparência, insuficientemente magros ou insuficientemente jovens para cumprir com os cânones, fugindo dos espelhos próprios e macaqueando-nos frente a esses outros espelhos, que são os olhos alheios.

De sermos desconformes na linguagem, convertidos, ao mais pequeno descuido, em imundos assediadores, em fascistas encartados ou em torquemadas de bairro.

De sermos desconformes com as tendências de “life style” ditadas pelos blogues, vlogues, revistas femininas, revistas masculinas e suplementos dos jornais de fim-de-semana.

Tendências e mais tendências, que têm a particularidade de se sucederem a vertiginosa velocidade e de se anularem, mutuamente, com gostosa convicção.

E nós, perdidos entre tanta tendência, desesperados perante esse terrível e embaraçoso cenário, que há-de ser o de chegarmos na segunda-feira, ao escritório, sem podermos relatar nenhuma tendência. Ou até sem termos uma tendência para postar nas redes sociais, que se converteram no imenso escritório das segundas-feiras e na imensa janela de onde vemos passar o mundo!

E neste medo, subtil e dissimulado, da desconformidade, lá nos vamos, em iludida liberdade, afirmando nesses tantos “Eus” modelares que vamos compondo, todos eles adequados, modernos, actualizados, informados, mundanos, apaixonados, experientes, descomplexados e tolerantes

Eus” que se multiplicam e anulam mutuamente, tal e qual como as tendências, numa desordem identitária que nos frustra, insatisfaz e, nos casos mais extremos, deprime.

Eus” postiços e superficialmente conformes, que nos agrilhoam e nos fazem perder de vista esse outro “Eu”, que é genuíno, autêntico, espontâneo e livre na sua singularidade e na especificidade da sua geografia pessoal, justamente aquela que não encaixa nos modelos teóricos dos congressos académicos, nem se expressa nesta neutralidade abúlica do pensamento mainstream ou da linguagem politicamente correcta.

Talvez a liberdade, aquela verdadeiramente livre, tenha, em tempos, passado por aqui...

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